quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Caso de recenseamento, de Carlos Drummond de Andrade

Na 423° edição do programa radiofônico Alacazum Palavras Para Entreter, apresentado pela escritora e locutora Celeste Martinez e que foi ao ar no dia 4 de outubro de 2015 das 8 às 9 h transmissão ao vivo Rio Una FM 87,9, cujo tema: Censo, tendo como música base Consenso, da Banda Escola Pública, de Cachoeira, Bahia. Indagamos do público, ouvinte-leitor, a seguinte pergunta: Qual a cor da sua pele?



CASO DE RECENSEAMENTO

O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínquo, aonde nunca chegam as notícias.

Não quero comprar nada.

Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.

Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?

E fecha-lhe a porta.

Ele bate de novo.

O senhor, outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?

A senhora não me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher este papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.

Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!

A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta restabelecer o diálogo.

Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa antes que eu chame meu marido!

Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele.

(Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário) .

Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.

É esse camelô aí que não quer deixar a gente sossegada!

Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo.

Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria! A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!

O marido faz lhe um gesto para calar se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é nem camelô nem policial nem cobrador de impostos nem enviado de Tenório Cavalcanti. A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender ao rapaz, que é bonzinho e respeitoso.

E como não há despesa nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto, pela primeira vez na vida, da curiosidade do governo.

O senhor tem filhos, seu Ediraldo?

Tenho três, sim senhor.

Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?

Pois não. Tenho o Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4.

Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?

Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.

Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...

Isso eu não sei, não me lembro.

E, voltando-se para a cozinha:

Mulher, sabes o nome da Pipoca?

A mulher aparece confusa.

Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.

Reviram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.

Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?

Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado, minha senhora, disponham!

Fonte: Livro Para Gostar de Ler, Crônicas, ed. Didática,
Carlos Drummond de Andrade, SP, Ática, 1978



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