Crônica de Celeste Martinez
Estava na Pizzaria Os Martinez, trabalhando. Aproximava-se a hora de
encerrar o expediente quando chegou o senhor Benedito, da Bolívia, fã do
Alacazum.
- Olá, dona Celeste.
- Boa noite, senhor Benedito. O que deseja?
- Parei para saudar a senhora.
- Obrigada.
- E aí, por que nunca mais eu te ouvi?
Estava se referindo ao programa de rádio Alacazum. Questão de micros
segundos abstrair, apenas as palavras “nunca mais”. Tal o corvo de Poe.
Para o senhor Benedito, duas semanas, digo dois domingos, de ausência
do Alacazum equivalia ao “nunca mais “ . Uma angustia bateu às portas do
meu coração. Eu teria que lhe participar. Dizer a verdade entretanto
arrisquei por em prática a assertiva que diz: para cada pergunta uma
nova pergunta.
- O senhor não sabe?
E para minha surpresa, ele responde:
- Claro que sei!
E deu uma pausa com a fala em tropeços.
- O que o senhor sabe, senhor Benedito?
Imediato:
- Que a senhora disse que não ia fazer mais o Alacazum naquela rádio.
Então alucinou-me a compreensão.
Qual a intenção daquele homem ao indagar-me algo que já sabia a resposta?
Ele não era uma pessoa ruim, contrário, demonstrava generosidade quando
falava da mulher e filhos. Sempre que me visitava na Pizzaria, trocava
figurinhas a respeito dos temas tratados no programa de rádio.
Acrescentava informações. Exímio conhecedor da história da cidade de
Valença Ba. Disse-me certa vez que foi com o Alacazum que ele conheceu
um parente. Memória fantástica. Conta todos os detalhes. Quem ligou,
quem deixou de ligar, quem fez falta. Ansiava ganhar a caixa de
chocolate e ganhou. Noutras vezes lhe faltava o crédito no celular e
ficava aflito. Finalmente prefiro dizer diante dos fatos que o senhor
Benedito, da Bolívia, quer puxar conversa, prolongar o tempo. Que ele
sofre com a solidão de não ter com quem falar. Porém, eu não posso ficar
alimentando a esperança diante da realidade já consumada. Penso: tenho
que lhe dizer de uma forma definitiva. E me escapa da boca a palavra:
- Acabou!
Pronto, saiu. De minha garganta como uma lança afiada direto para o
coração daquele homem. Eu estava sentada e ele em pé quando notei o seu
semblante se modificar, empalidecer. Movimentou a cabeça de um lado para
o outro, cabisbaixo, passou as mãos pelos cabelos e soltou novamente o
questionamento inesperado:
- E agora?
Ele não se conformava.
Exigia de mim a resposta que eu não tinha. E eu, sem saber mais o que
dizer por que já me sufocava a ansia por chorar, balbuciei palavras
desconexas.
- Como é que se diz “ quem tem juízo obedece”?
Eu estava tentando me recordar do provérbio e este compreendeu perfeitamente o meu raciocinio e consertou:
- Manda quem pode. Obedece quem tem juízo.
- Pois é. Eu disse.
Foi aí que o silêncio abraçou nós dois. Os demais elementos em torno da
pizzaria perderam a identifição enquanto seres inanimados. Naquele
momento, era só eu e o senhor Benedito da Bolívia. E na inevitável razão
de por quê existe a vida, o viver, o prosseguir, eu vi, em câmera
lenta, o corpo de um ser humano, sair, devagarinho, cambaleante, para
dentro da noite do “nunca mais “.
Valença, Bahia, 17 de fevereiro de 2017 00:52 Celeste Martinez