segunda-feira, 28 de julho de 2014

Crônica: O acorde final de Rubem Alves


Celeste Martinez lendo a crônica: O acorde final de Rubem Alves

Na 360° edição do Alacazum Palavras Para Entreter apresentação da escritora e locutora Celeste Martinez, que foi ao ar no dia 20 de julho de 2014, transmissão ao vivo 87,9 Rio Una FM, apreciamos a leitura da crônica: O acorde final de Rubem Alves.

O acorde final

Eu havia colocado no toca-discos aquele disco com poemas do Vinicius e do Drummond, disco antigo, long-play – o perigo são os riscos que fazem a agulha saltar, mas felizmente até ali tudo tinha estado lindo e bonito, sem pulos e sem chiados, o próprio Vinicius, na sua voz rouca de uísque e fumo, havia recitado os sonetos da separação, da despedida, do amor total, dos olhos da amada. Chegara meu favorito, “O haver” - o Vinicius percebia que a noite estava chegando e tratava então de fazer um balanço de tudo o que fora feito e do que sobrara disso. Assim, as estrofes começavam todas com uma mesma palavra, “Resta...” - foi isso que sobrou.

Resta essa capacidade de ternura, essa intimidade perfeira com o silêncio...
Resta essa vontade de chorar diante da beleza, essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido...
Resta essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas tomam por esperança...

Começava, naquele momento, a última quadra, e de tanta vezes lê-la e outras tantas ouvi-la, eu já sabia de cor suas palavras, e as ia repetindo dentro de mim, antecipando a última, que seria o fim, sabendo que tudo o que é belo precisa terminar.

O pôr-do-sol é belo porque suas cores são efêmeras, em poucos minutos não mais existirão.

A sonata é bela porque sua vida é curta, não dura mais que 20 minutos. Se a sonata fosse uma música sem fim, é certo que seru lugar seria entre os instrumentos de tortura do Diabo, no inferno.

Até o beijo... Que amante suportaria um beijo que não terminasse nunca?
O poema também tinha de morrer para que fosse perfeito, para que fosse belo e para que eu tivesse saudades dele, depois do seu fim. Tudo o que fica perfeito pede para morrer. Depois da morte do poema viria o silêncio – o vazio. Nasceria então uma outra coisa em seu lugar: a saudade. A saudade só floresce na ausência.

É na saudade que nascem os deuses- eles existem para que o amado que se perdeu possa retornar. Que a vida seja como o disco, que pode ser tocado quantas vezes se desejar. Os deuses – nenhum amor tenho por eles, em si mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu poder de trazer de volta para que o abraço se repita. Divinos não são os deuses. Divino é o reencontro.
A voz do Vinicius já anunciava o fim. Ele passou a falar mais baixo.
E eu, na minha cabeça, automaticamente me adiantei, recitando em silêncio o último verso: “ sem saber que é a minha mais nova namorada”.

Foi então que, no último momento, o imprevisto aconteceu: a agulha pulou para trás – talvez tivesse achado o poema tão bonito que ser recusava a ser uma cúmplice de seu fim, não aceitava sua morte, e ali ficou a voz morta do Vinicius repentindo palavras sem sentido: “ sem saber que é a minha mais nova...” , “ sem saber que é a minha mais nova...”, “ sem saber que é minha mais nova...”.

Levantei-me do meu lugar, fui até o toca-discos, e consumei o assassinato: empurrei suavemente o braço com o meu dedo, e ajudei a beleza a morrer, ajudei-a a ficar perfeita. Ela me agradeceu, disse o que precisava dizer “ sem saber que é a minha mais nova namorada...” Depois disso foi o silêncio.

Fiquei pensando se aquilo não era uma parábola para a vida, a vida como uma obra de arte, sonata, poema, dança. Já no primeiro momento, quando o compositor ou o poeta ou o dançarino preparam sua obra, o último momento já está em gestação. É bem possível que o último verso do poema tenho sido o primeiro a ser escrito pelo Vinicius. A vida é tecida como a teia de aranha: começa sempre do fim. Quando a vida começa do fim, ela e sempre bela, por ser colorida com as cores do crepúsculo.


Não, eu não acredito que a vida biológica deva ser preservada a qualquer preço.

“Para todas as coisas há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer ( Eclesistes 3 1-2).

A vida não é uma coisa biológica. A vida é uma entidade estética. Morta a possibilidade de sentir alegria diante do belo, morre também a vida, tal como Deus no-la deu – ainda que a parafenália dos médicos continue a emitir seu bips e a produzir ziguezagues no vídeo.

A vida é como aquela peça. É preciso terminar.
A morte é o último acorde que diz: está completo. Tudo o que se completa deseja morrer.

Do livro: As melhores crônicas de Rubem Alves

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