Celeste Martinez lendo a crônica: O acorde final de Rubem Alves
Na 360° edição do Alacazum Palavras Para Entreter apresentação da escritora e locutora Celeste Martinez, que foi ao ar no dia 20 de julho de 2014, transmissão ao vivo 87,9 Rio Una FM, apreciamos a leitura da crônica: O acorde final de Rubem Alves.
O acorde final
Eu havia colocado no
toca-discos aquele disco com poemas do Vinicius e do Drummond, disco
antigo, long-play – o perigo são os riscos que fazem a agulha
saltar, mas felizmente até ali tudo tinha estado lindo e bonito, sem
pulos e sem chiados, o próprio Vinicius, na sua voz rouca de uísque
e fumo, havia recitado os sonetos da separação, da despedida, do
amor total, dos olhos da amada. Chegara meu favorito, “O haver” -
o Vinicius percebia que a noite estava chegando e tratava então de
fazer um balanço de tudo o que fora feito e do que sobrara disso.
Assim, as estrofes começavam todas com uma mesma palavra, “Resta...”
- foi isso que sobrou.
Resta essa
capacidade de ternura, essa intimidade perfeira com o silêncio...
Resta essa vontade
de chorar diante da beleza, essa cólera cega em face da injustiça e
do mal-entendido...
Resta essa faculdade
incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável a que às
vezes os poetas tomam por esperança...
Começava, naquele
momento, a última quadra, e de tanta vezes lê-la e outras tantas
ouvi-la, eu já sabia de cor suas palavras, e as ia repetindo dentro
de mim, antecipando a última, que seria o fim, sabendo que tudo o
que é belo precisa terminar.
O pôr-do-sol é
belo porque suas cores são efêmeras, em poucos minutos não mais
existirão.
A sonata é bela
porque sua vida é curta, não dura mais que 20 minutos. Se a sonata
fosse uma música sem fim, é certo que seru lugar seria entre os
instrumentos de tortura do Diabo, no inferno.
Até o beijo... Que
amante suportaria um beijo que não terminasse nunca?
O poema também
tinha de morrer para que fosse perfeito, para que fosse belo e para
que eu tivesse saudades dele, depois do seu fim. Tudo o que fica
perfeito pede para morrer. Depois da morte do poema viria o silêncio
– o vazio. Nasceria então uma outra coisa em seu lugar: a saudade.
A saudade só floresce na ausência.
É na saudade que
nascem os deuses- eles existem para que o amado que se perdeu possa
retornar. Que a vida seja como o disco, que pode ser tocado quantas
vezes se desejar. Os deuses – nenhum amor tenho por eles, em si
mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu poder de trazer de volta
para que o abraço se repita. Divinos não são os deuses. Divino é
o reencontro.
A voz do Vinicius já
anunciava o fim. Ele passou a falar mais baixo.
E eu, na minha
cabeça, automaticamente me adiantei, recitando em silêncio o último
verso: “ sem saber que é a minha mais nova namorada”.
Foi então que, no
último momento, o imprevisto aconteceu: a agulha pulou para trás –
talvez tivesse achado o poema tão bonito que ser recusava a ser uma
cúmplice de seu fim, não aceitava sua morte, e ali ficou a voz
morta do Vinicius repentindo palavras sem sentido: “ sem saber que
é a minha mais nova...” , “ sem saber que é a minha mais
nova...”, “ sem saber que é minha mais nova...”.
Levantei-me do meu
lugar, fui até o toca-discos, e consumei o assassinato: empurrei
suavemente o braço com o meu dedo, e ajudei a beleza a morrer,
ajudei-a a ficar perfeita. Ela me agradeceu, disse o que precisava
dizer “ sem saber que é a minha mais nova namorada...” Depois
disso foi o silêncio.
Fiquei pensando se
aquilo não era uma parábola para a vida, a vida como uma obra de
arte, sonata, poema, dança. Já no primeiro momento, quando o
compositor ou o poeta ou o dançarino preparam sua obra, o último
momento já está em gestação. É bem possível que o último verso
do poema tenho sido o primeiro a ser escrito pelo Vinicius. A vida é
tecida como a teia de aranha: começa sempre do fim. Quando a vida
começa do fim, ela e sempre bela, por ser colorida com as cores do
crepúsculo.
Não, eu não
acredito que a vida biológica deva ser preservada a qualquer preço.
“Para todas as
coisas há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de
morrer ( Eclesistes 3 1-2).
A vida não é uma
coisa biológica. A vida é uma entidade estética. Morta a
possibilidade de sentir alegria diante do belo, morre também a vida,
tal como Deus no-la deu – ainda que a parafenália dos médicos
continue a emitir seu bips e a produzir ziguezagues no vídeo.
A vida é como
aquela peça. É preciso terminar.
A morte é o último
acorde que diz: está completo. Tudo o que se completa deseja morrer.
Do livro: As
melhores crônicas de Rubem Alves
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