Na
423° edição do programa radiofônico Alacazum Palavras Para
Entreter, apresentado pela escritora e locutora Celeste Martinez e
que foi ao ar no dia 4 de outubro de 2015 das 8 às 9 h transmissão
ao vivo Rio Una FM 87,9, cujo tema: Censo, tendo como música base
Consenso, da Banda Escola Pública, de Cachoeira, Bahia. Indagamos do
público, ouvinte-leitor, a seguinte pergunta: Qual a cor da sua
pele?
CASO
DE RECENSEAMENTO
O
agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínquo,
aonde nunca chegam as notícias.
— Não
quero comprar nada.
— Eu
não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população
e lhe peço o favor de me ajudar.
— Ah
moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que
Deus me ajude. Com licença, sim?
E
fecha-lhe a porta.
Ele
bate de novo.
— O
senhor, outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?
— A
senhora não me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é
a encher este papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada.
Basta responder a umas perguntinhas.
— Não
vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!
A
porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta
restabelecer o diálogo.
— Sabe
de uma coisa? Dê o fora depressa antes que eu chame meu marido!
— Chame
sim, minha senhora, eu me explico com ele.
(Só
Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia na cabeça:
é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o
questionário, é preciso preencher o questionário) .
— Que
é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa,
puxado pela mulher.
— É
esse camelô aí que não quer deixar a gente sossegada!
— Não
sou camelô, meu amigo, sou agente do censo.
— Agente
coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a
mercadoria! A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!
O
marido faz lhe um gesto para calar se, enquanto ele estuda o rapaz,
suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de
que não é nem camelô nem policial nem cobrador de impostos nem
enviado de Tenório Cavalcanti. A idéia de recenseamento, pouco a
pouco, vai se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito.
Não custa atender ao rapaz, que é bonzinho e respeitoso.
E
como não há despesa nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer
ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto, pela
primeira vez na vida, da curiosidade do governo.
— O
senhor tem filhos, seu Ediraldo?
— Tenho
três, sim senhor.
— Pode
me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?
— Pois
não. Tenho o Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel Urubatã, de
10; e a Pipoca, de 4.
— Muito
bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a Pipoca, como é
mesmo o nome dela?
— Nós
chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.
— Se
pudesse me dizer como é que ela foi registrada...
— Isso
eu não sei, não me lembro.
E,
voltando-se para a cozinha:
— Mulher,
sabes o nome da Pipoca?
A
mulher aparece confusa.
— Assim
de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.
Reviram
a gaveta, não acham a certidão de registro civil.
— Só
perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós
ela é Pipoca, tá bom?
— Pois
então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito obrigado, seu
Ediraldo, muito obrigado, minha senhora, disponham!
Fonte:
Livro Para Gostar de Ler, Crônicas, ed. Didática,
Carlos
Drummond de Andrade, SP, Ática, 1978