Não são as décadas que nos transformam; são os fatos. Eles vão cavando buracos no tempo e criando caminhos que não podemos prever. Há épocas lentas, épocas em correria, há épocas de altos e baixos, há épocas sangrentas, épocas eufóricas, há épocas que parecem ataques epiléticos da história. Há épocas sujas, épocas limpas, mas para onde nos levam os fatos históricos? Antigamente, achávamos que os fatos nos levariam para um futuro harmônico, que a vida era uma linha reta que nos marcava desde os macacos até o paraíso cristão ou o paraíso socialista ou mais recentemente ao paraíso do fim da história do capitalismo.
Hoje estamos mais desiludos, pois nossa época parece um labirinto de boas e más notícias, uma teia do Homem Aranha, um deserto do Iraque de idéias, um vazio cérebro de Bush, um futuro cheio de terrores como nos piores pesadelos de ficção cientifica. Antes, sonhávamos com o futuro; hoje temos pavor de que ele chegue. Pode ser que mude nosso terror, se houver algo com que nos iludamos, uma volta ao bom senso na política do mundo. Aí, talvez, vivamos de novo com esperança, como vivíamos quando a TV Globo foi fundada.
Em 1965, o mundo não era muito melhor do que hoje, só que não tínhamos consciência disso. Os dez anos de 65 a 75 foram um túnel que se estreitou pouco a pouco, da liberdade para a desesperança.
No Brasil o golpe militar de 64 ainda não tinha assumido sua face feroz do ato número 5. Ainda tínhamos o simpático ET que era o Castello Branco, feio por fora, mas um sujeito legal por dentro. Depois dele, o autoritarismo se fechou, chegando até a ditadura feroz do AI-5 em 68.
Este ritmo de mudanças foi semelhante aos anos de 65 até 75, a passagem da esperança para a progressiva desilusão de que a felicidade bateria um dia em nossa porta. Na década de 60 ainda se comemorava a paz depois da guerra mundial, com euforia democrática movida pela prosperidade do capitalismo.
O mundo era dos jovens, era o oásis do pós-guerra. Havia já o Vietnã, Cuba invadida, mas o clima das cabeças era de alegria. As saias curtas, as pernas de fora, as pílulas anticoncepcionais fazendo o sexo livre, a revolução gráfica desenhando um mundo ideal junto com a publicidade. Havia um clima de ousadia, de fé, com a crença de que tudo era fácil de resolver, de que era simples fazer revoluções, que o socialismo viria dançando de Cuba, de que os Beatles e os Rolling Stones nos libertariam para sempre da caretice. Até a revolução cultural chinesa em 66 nos parecia uma maravilhosa novidade jovem. Não sabíamos ainda dos crimes e dos cadáveres.
Os líderes do sonho começaram a morrer. Guevara saiu de Cuba em busca da utopia e foi denunciado pelos próprios camponeses na Bolívia e morreu como um Cristo desmoralizado na selva.
O estudante Edson Luis foi assassinado em março de 68 e começou o processo que acabou no AI-5. Logo depois Martin Luther King foi assassinado nos Estados Unidos. A direita começava a retomar seus pontos perdidos. Em maio de 68 o mundo explodiu. O mundo todo. Desde a rebelião dos estudantes na França até o campus de Kent nos Estados Unidos. E começamos a entender que o buraco do mundo era mais embaixo, que não bastavam palavras de ordem e boas idéias para vencer o conservadorismo.
As boas novas sempre vinham anuladas por um desastre qualquer. A chegada do homem a Lua, um dos grandes momentos da história humana, foi ao mesmo tempo em que Sharon Tate, mulher de Polanski, grávida, foi morta a punhaladas por um bando de hippies enlouquecidos. A paz, o amor e a flor foram virando rancor, medo, ódio. Logo depois o festival de Woodstock tentou manter viva a esperança, mas ela já estava ferida de morte.
Aqui, a guerrilha urbana conseguiu seu maior gol, o rapto do embaixador americano Elbrick, igual ao milésimo gol de Pelé que entrou no dia 19 de novembro de 69, junto também com a chegada do Médici ao poder, com sua cara de vampiro radical, enquanto o Marighela morria em São Paulo. Tudo ao mesmo tempo.
E assim fomos seguindo até o fim de 75, com um progressivo fechamento da esperança, com os fatos ficando menores, menos históricos e mais episódicos, com as tragédias virando chanchadas e as alegrias caindo em melancolia. Era como se a grande História estivesse cercada, impedida, e só as pequenas bobagens pudessem acontecer, prenunciando um período futuro de inanidades, de irrelevâncias. Tivemos apenas uma grande alegria sob a sombra vampírica de Médici: a Copa do Mundo de 70. Fora isso, só bode.
Ao menos, fomos ficando famintos de liberdade que só chegou 10 anos depois dessa década que se fechou em outubro de 75 com o enforcamento do jornalista Vladimir Herzog, na ponta de um cinto, caído de uma janela no DOI CODI de São Paulo.
Nesses 10 anos, de 65 a 75, fomos do sonho ao pesadelo, e fomos aprendendo que sem democracia não há vida.
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL694617-15605,00.html
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