Na 196° edição do programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 7 de novembro de 2010, transmissão pela Rádio Clube de Valença 650 KHZ AM apreciamos o capítulo XXX do livro: O homem que calculava de Malba Tahan.
Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso!
O leão, o tigre e o chacal abandonaram, certa vez, a furna sombria em que viviam e saíram, em peregrinação amistosa, a jornadear pelo mundo, á procura de alguma região rica em rebanhos de tenras ovelhinhas.
Em meio de grande floresta o temível leão, que chefiava, naturalmente, o grupo, sentou-se, fatigado, sobre as patas traseiras, e erguendo a cabeça enorme soltou um rugido tão forte que fez tremer as árvores mais próximas.
O tigre e o chacal entreolharam-se assustados. Aquele rugido ameaçador com que o perigoso monarca, de juba escura e garras invencíveis, perturbava o silêncio da mata, traduzido para uma linguagem ao alcance dos outros animais, queria dizer, laconicamente, o seguinte: Estou com fome.
-A vossa impaciência é perfeitamente justificável! - observou o chacal dirigindo-se humildemente ao leão.- Asseguro-vos, entretanto, que conheço, nesta floresta, um atalho misterioso, do qual as brutas feras jamais tiveram notícia. Por ele poderíamos chegar, com facilidade, a um pequeno povoado, quase em ruínas, onde a caça é abundante, fácil, ao alcance das garras, e isenta de qualquer perigo!
- Vamos chacal! - acudiu, de pronto, o leão.- Quero conhecer e admirar esse recanto adorável!
Ao cair da tarde, guiados pelo chacal, chegaram os viajantes ao alto de um monte, não muito elevado, donde se descortinava uma pequena e verdejante planície.
No meio dessa planície achavam-se, descuidados, alheios ao perigo que os ameaçava, três pacíficos animais: uma ovelha, um porco e um coelho.
Ao avistar a presa fácil e certa, o leão sacudiu a juba abundante num movimento de incontida satisfação. E com os olhos brilhantes de gula, voltou-se para o tigre e rosnou, em tom possivelmente amistoso:
- Ó tigre admirável! Vejo ali três belos e saborosos petiscos: uma ovelha, um porco e um coelho! Tu, que és vivo e esperto, deves saber, com talento, dividir três por três. Faze, pois, com justiça e equidade essa operação fraternal: dividir três caças por três caçadores!
Lisonjeado com semelhante convite, o vaidoso tigre, depois de exprimir com uivos de falsa modéstia a sua incompetência e o seu desvalor, assim respondeu:
- A divisão que generosamente acabais de propor, ó rei, é muito simples e pode fazer-se com relativa facilidade. A ovelha, que é o maior dos três petiscos, o mais saboroso e, sem dúvida, capaz de saciar a fome de um bando de leões do deserto, cabe-vos, de pleno direito. A ovelha será vossa, exclusivamente vossa! Aquele porquinho magro, sujo e despiciendo, que não vale uma perna da bela ovelha, ficará para mim, que sou modesto e com bem pouco me contento. E, finalmente, aquele minúsculo e desprezível coelho, de reduzidas carnes, indigno do paladar apurado de um rei, tocará ao nosso companheiro chacal, como recompensa pela valiosa indicação que há pouco nos proporcionou.
- Estúpido! Egoista! - ruiu o pavoroso leão, tomado de fúria indescritivel! - Quem te ensinou a fazer divisões dessa maneira, imbecil? Onde já viste uma partilha de três por três ser resolvida desse modo?
E, erguendo a pesadíssima pata, descarregou na cabeça do desprevenido tigre tão violenta pancada que o atirou morto a alguns passos de distância.
Em seguida, voltando-se para o chacal, que assistira estarrecido àquele trágico desfecho da divisão de três por três, assim falou:
- Meu caro chacal! Sempre fiz da tua inteligência o mais elevado conceito. Sei que és o mais engenhoso e esclarecido dos animais da floresta, e outro não conheço que possa levar-te a melhor na habilidade com que sabes resolver os mais inextricáveis problemas. Encarrego-te, pois, de fazer essa divisão simples e banal, que o estúpido do tigre (como acabaste de ver) não soube efetuar satisfatoriamente. Estás vendo, amigo chacal, aqueles três apetitosos animais, a ovelha, o porco e o coelho? Somos dois e os animais apetitosos são três. Pois bem: vais dividir os três por dois! Vamos: faze logo os cálculos, pois preciso saber qual é o quociente exato que a mim cabe!
- Não passo de humilde e rude servo de Vossa Majestade - ganiu o chacal, em tom humílimo de respeito. Cumpre-me, pois, obedecer, cegamente à ordem que acabo de receber. Vou, como se fora um sábio geômetra, dividir aqueles três animais por nós dois. Trata-se de uma simples divisão de três por dois! A divisão matematicamente certa e justa é a seguinte: a admirável ovelha, manjar digno de um soberano, cabe aos vossos reais caninos, pois é indiscutível que sois o rei dos animais; o belo bacorinho, do qual estou ouvindo os harmoniosos grunhidos, deve caber também ao vosso real paladar, visto dizerem os entendidos que a carne de porco dá mais força e energia aos leões, e o saltitante coelho, com sua longas orelhas, deve ser, também, por vós saboreado a titulo de sobremesa, já que aos reis, por lei tradicional entre os povos, cabem sempre, como complemento dos opiparos banquetes, os manjares finos e delicados.
- Ó incomparável chacal! -exclamou o leão, encantado com a partilha que acabava de apreciar. - Como são harmoniosas e sábias as tuas palavras! Quem te ensinou esse artificio maravilhoso de dividir, com tanta perfeição e acerto, três por dois?
- A patada com que vossa justiça puniu, há pouco, o tigre arrogante e ambicioso, ensinou-me a dividir, com segurança, três por dois, quando desses dois, um é o leão, outro é chacal! Na matemática do mais forte, penso eu, o quociente é sempre exato e ao mais fraco depois da divisão nem o resto deve caber!
E desse dia em diante, inspiradas na mais torpe sabujice, julgou o astucioso chacal que poderia viver tranquilo a sua vida de bajulador a regalar-se com os sobejos que deixava o sanguinário leão.
Enganou-se.
Decorridas duas ou três semanas, o leão irritado, faminto, desconfiou do servilismo do chacal e deu-lhe violenta patada, matando-o cruelmente.
Cabe aqui advertir.
É que a verdade deve ser dita, redita, e quarenta vezes repetida:
- O castigo de Deus está mais perto do pecador, do que as pálpebras estão dos olhos!
- Eis aí, ó judicioso ulemá Nascif- concluiu Beremiz - eis ai, narrada com a maior simplicidade, uma fábula, na qual assinalamos duas divisões. A primeira foi uma divisão de três por três, que foi indicada, mas deixou de ser efetuada. A segunda foi uma divisão de três por dois, que foi efetuada sem deixar resto.
Ouvidas essas palavras do calculista, fez-se no divã do rei, profundo silêncio. Aguardavam todos, com vivo interesse, a apreciação ou melhor, a sentença do terrível arguidor:
O cheique Nascif Rahal, depois de ajeitar nervosamente o seu gorro verde e passar a mão pela barba, proferiu com certo azedume, o seu julgamento:
- A fábula narrada atendeu, perfeitamente ás exigências por mim formuladas. Confesso que não a conhecia. É, a meu ver, das mais felizes. O famoso Esopo, o grego, não faria melhor. É esse o meu parecer. Allah porém é mais sábio e mais justo.
A narrativa de Beremiz, aprovada pelo cheique do gorro verde, agradou a todos os vizires e nobres muçulmanos. O principe Cluzir Sschá, hóspede do rei, declarou em voz alta:
- Encerra essa fábula que acabamos de ouvir, profunda lição de moral. Os vis bajuladores que rastejam nas cortes, sobre os tapetes dos poderosos, podem, a principio, tirar algum proveito das subserviências, mas, no fim, são e serão sempre castigados, pois o castigo de Deus está sempre bem perto do pecador. Vou narrá-la aos meus amigos e auxiliares, logo que voltar para as terras de Lahore!
Do soberano árabe a narrativa de Beremiz mereceu o qualificativo de maravilhosa. Determinou ainda, o grande emir, que a singular divisão de três por três fosse conservada nos arquivos do Califado, pois a narrativa de Beremiz, por suas elevadas finalidades morais, merecia ser escrita com letras de ouro nas asas transparentes de uma borboleta branca do Cáucaso.
Un poema de María Paula Alzugaray
Há 2 meses
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