segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O HOMEM QUE CALCULAVA DE MALBA TAHAN

Na 196° edição do programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 7 de novembro de 2010, transmissão pela Rádio Clube de Valença 650 KHZ AM apreciamos o capítulo XXX do livro: O homem que calculava de Malba Tahan.

Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso!
O leão, o tigre e o chacal abandonaram, certa vez, a furna sombria em que viviam e saíram, em peregrinação amistosa, a jornadear pelo mundo, á procura de alguma região rica em rebanhos de tenras ovelhinhas.
Em meio de grande floresta o temível leão, que chefiava, naturalmente, o grupo, sentou-se, fatigado, sobre as patas traseiras, e erguendo a cabeça enorme soltou um rugido tão forte que fez tremer as árvores mais próximas.
O tigre e o chacal entreolharam-se assustados. Aquele rugido ameaçador com que o perigoso monarca, de juba escura e garras invencíveis, perturbava o silêncio da mata, traduzido para uma linguagem ao alcance dos outros animais, queria dizer, laconicamente, o seguinte: Estou com fome.
-A vossa impaciência é perfeitamente justificável! - observou o chacal dirigindo-se humildemente ao leão.- Asseguro-vos, entretanto, que conheço, nesta floresta, um atalho misterioso, do qual as brutas feras jamais tiveram notícia. Por ele poderíamos chegar, com facilidade, a um pequeno povoado, quase em ruínas, onde a caça é abundante, fácil, ao alcance das garras, e isenta de qualquer perigo!
- Vamos chacal! - acudiu, de pronto, o leão.- Quero conhecer e admirar esse recanto adorável!
Ao cair da tarde, guiados pelo chacal, chegaram os viajantes ao alto de um monte, não muito elevado, donde se descortinava uma pequena e verdejante planície.
No meio dessa planície achavam-se, descuidados, alheios ao perigo que os ameaçava, três pacíficos animais: uma ovelha, um porco e um coelho.
Ao avistar a presa fácil e certa, o leão sacudiu a juba abundante num movimento de incontida satisfação. E com os olhos brilhantes de gula, voltou-se para o tigre e rosnou, em tom possivelmente amistoso:
- Ó tigre admirável! Vejo ali três belos e saborosos petiscos: uma ovelha, um porco e um coelho! Tu, que és vivo e esperto, deves saber, com talento, dividir três por três. Faze, pois, com justiça e equidade essa operação fraternal: dividir três caças por três caçadores!
Lisonjeado com semelhante convite, o vaidoso tigre, depois de exprimir com uivos de falsa modéstia a sua incompetência e o seu desvalor, assim respondeu:
- A divisão que generosamente acabais de propor, ó rei, é muito simples e pode fazer-se com relativa facilidade. A ovelha, que é o maior dos três petiscos, o mais saboroso e, sem dúvida, capaz de saciar a fome de um bando de leões do deserto, cabe-vos, de pleno direito. A ovelha será vossa, exclusivamente vossa! Aquele porquinho magro, sujo e despiciendo, que não vale uma perna da bela ovelha, ficará para mim, que sou modesto e com bem pouco me contento. E, finalmente, aquele minúsculo e desprezível coelho, de reduzidas carnes, indigno do paladar apurado de um rei, tocará ao nosso companheiro chacal, como recompensa pela valiosa indicação que há pouco nos proporcionou.
- Estúpido! Egoista! - ruiu o pavoroso leão, tomado de fúria indescritivel! - Quem te ensinou a fazer divisões dessa maneira, imbecil? Onde já viste uma partilha de três por três ser resolvida desse modo?
E, erguendo a pesadíssima pata, descarregou na cabeça do desprevenido tigre tão violenta pancada que o atirou morto a alguns passos de distância.
Em seguida, voltando-se para o chacal, que assistira estarrecido àquele trágico desfecho da divisão de três por três, assim falou:
- Meu caro chacal! Sempre fiz da tua inteligência o mais elevado conceito. Sei que és o mais engenhoso e esclarecido dos animais da floresta, e outro não conheço que possa levar-te a melhor na habilidade com que sabes resolver os mais inextricáveis problemas. Encarrego-te, pois, de fazer essa divisão simples e banal, que o estúpido do tigre (como acabaste de ver) não soube efetuar satisfatoriamente. Estás vendo, amigo chacal, aqueles três apetitosos animais, a ovelha, o porco e o coelho? Somos dois e os animais apetitosos são três. Pois bem: vais dividir os três por dois! Vamos: faze logo os cálculos, pois preciso saber qual é o quociente exato que a mim cabe!
- Não passo de humilde e rude servo de Vossa Majestade - ganiu o chacal, em tom humílimo de respeito. Cumpre-me, pois, obedecer, cegamente à ordem que acabo de receber. Vou, como se fora um sábio geômetra, dividir aqueles três animais por nós dois. Trata-se de uma simples divisão de três por dois! A divisão matematicamente certa e justa é a seguinte: a admirável ovelha, manjar digno de um soberano, cabe aos vossos reais caninos, pois é indiscutível que sois o rei dos animais; o belo bacorinho, do qual estou ouvindo os harmoniosos grunhidos, deve caber também ao vosso real paladar, visto dizerem os entendidos que a carne de porco dá mais força e energia aos leões, e o saltitante coelho, com sua longas orelhas, deve ser, também, por vós saboreado a titulo de sobremesa, já que aos reis, por lei tradicional entre os povos, cabem sempre, como complemento dos opiparos banquetes, os manjares finos e delicados.
- Ó incomparável chacal! -exclamou o leão, encantado com a partilha que acabava de apreciar. - Como são harmoniosas e sábias as tuas palavras! Quem te ensinou esse artificio maravilhoso de dividir, com tanta perfeição e acerto, três por dois?
- A patada com que vossa justiça puniu, há pouco, o tigre arrogante e ambicioso, ensinou-me a dividir, com segurança, três por dois, quando desses dois, um é o leão, outro é chacal! Na matemática do mais forte, penso eu, o quociente é sempre exato e ao mais fraco depois da divisão nem o resto deve caber!
E desse dia em diante, inspiradas na mais torpe sabujice, julgou o astucioso chacal que poderia viver tranquilo a sua vida de bajulador a regalar-se com os sobejos que deixava o sanguinário leão.
Enganou-se.
Decorridas duas ou três semanas, o leão irritado, faminto, desconfiou do servilismo do chacal e deu-lhe violenta patada, matando-o cruelmente.
Cabe aqui advertir.
É que a verdade deve ser dita, redita, e quarenta vezes repetida:
- O castigo de Deus está mais perto do pecador, do que as pálpebras estão dos olhos!
- Eis aí, ó judicioso ulemá Nascif- concluiu Beremiz - eis ai, narrada com a maior simplicidade, uma fábula, na qual assinalamos duas divisões. A primeira foi uma divisão de três por três, que foi indicada, mas deixou de ser efetuada. A segunda foi uma divisão de três por dois, que foi efetuada sem deixar resto.
Ouvidas essas palavras do calculista, fez-se no divã do rei, profundo silêncio. Aguardavam todos, com vivo interesse, a apreciação ou melhor, a sentença do terrível arguidor:
O cheique Nascif Rahal, depois de ajeitar nervosamente o seu gorro verde e passar a mão pela barba, proferiu com certo azedume, o seu julgamento:
- A fábula narrada atendeu, perfeitamente ás exigências por mim formuladas. Confesso que não a conhecia. É, a meu ver, das mais felizes. O famoso Esopo, o grego, não faria melhor. É esse o meu parecer. Allah porém é mais sábio e mais justo.
A narrativa de Beremiz, aprovada pelo cheique do gorro verde, agradou a todos os vizires e nobres muçulmanos. O principe Cluzir Sschá, hóspede do rei, declarou em voz alta:
- Encerra essa fábula que acabamos de ouvir, profunda lição de moral. Os vis bajuladores que rastejam nas cortes, sobre os tapetes dos poderosos, podem, a principio, tirar algum proveito das subserviências, mas, no fim, são e serão sempre castigados, pois o castigo de Deus está sempre bem perto do pecador. Vou narrá-la aos meus amigos e auxiliares, logo que voltar para as terras de Lahore!
Do soberano árabe a narrativa de Beremiz mereceu o qualificativo de maravilhosa. Determinou ainda, o grande emir, que a singular divisão de três por três fosse conservada nos arquivos do Califado, pois a narrativa de Beremiz, por suas elevadas finalidades morais, merecia ser escrita com letras de ouro nas asas transparentes de uma borboleta branca do Cáucaso.

2 comentários:

Anônimo disse...
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