sexta-feira, 20 de junho de 2014

Crõnica: Complexo de vira-latas de Nelson Rodrigues

Na 355° edição do Alacazum Palavras para Entreter apresentação da escritora e locutora Celeste Martinez e que foi ao ar no dia 15 de junho de 2014 das  8 às 9 h cujo tema: Complexo de vira-latas, expressão criada pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues; apreciamos mais uma crônica de sua autoria, intitulada: Complexo de vira-latas.

Complexo de vira-latas


Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperaança masi frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: " O Brasil não vai nem se classificar" E, aqui, eu pergunto:

- Não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional e nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo  que nos ficou dos 2 X1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou" como poderia dizer: "extraiu" de nós o título como se fosse um dente.

E hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: - é ainda a frustação de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah!. a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos : _ o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas?
 Eu poderia responder, simplesmente, "não". Mas eis a verdade:

- eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto joga dores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte:- qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma:

- temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de " complexo de vira-latas". Estou a imaginar o espanto do leitor: " O que vem a ser isso"? Eu explico.

Por "Complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente em face do resto do mundo. Isto em tdos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos " os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate.

Pois bem:  - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - por que Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.

O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez  que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.

Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.


Texto extraido do livro: As cem melhores crônicas brasileira.

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