sexta-feira, 20 de junho de 2014

Pra que essa gana destrutiva e bestial? Crônica de Nelson Rodrigues

Na 355° edição do Alacazum Palavras Para Entreter, apresentação da escritora e locutora Celeste Martinez, que foi ao ar no dia  15 de junho de 2014 das 8 às 9 h transmissão ao vivo 87,9 Rio Una FM, cujo tema: " Complexo de Vira- Latas" expressão criada pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues; apreciamos a crônica: Pra que essa gana destrutia e bestial?

Amigos, fui testemunha, certa vez de um fato prodigioso. Imaginem vocês que eu ia passando pelo cemitério, quando lá chegou um enterro. Alguém me esperava numa esquina próxima. Mas há um "charme" na morte, há um apelo que ninguém resiste. Entre um casamento, um batizado ou um enterro, qualquer um prefere o velório, embora este último não tenha os guaranás e os salgadinhos dos dois primeiros.

Diante de um caixão, o sujeito faz sempre esta reflexão egoista e estimulante " ainda bem que eu não sou o defunto". Mas, como ia dizendo: espiava eu o enterro, quando aconteceu uma coisa inédita: a multidão desandou a bater palmas. Nada se compara e nada descreve o meu assombro mudo. Pela primeira vez, eu via um defunto aplaudido. A meu lado, um cavaleiro berrava: Bravos! Bravíssimo! E só faltava pedir bbis como na ópera.

Ainda hoje me pergunto que méritos especiais e deslumbrantes teria esse cadáver para merecer tamanha apoteose fúnebre. Não impotam as razões o fato em si já constitui um escândalo bem singular. Assim, debaixo de palmas, lá foi enterrado o homem e posso imaginar a perplexidade dos vermes que se preparavam para roer-lhe as pobres carnes lívidas.
Da porta do cemitério passo para o Maracanã. Eu quero comparar as duas coisas: o defunto aplaudido e os jogos vaiados. Tão impróprias, inadequadas, insólitas como a apoteose fúnebre foram as vaias de sábado e domingo. Em dois dias, flagelamos quatro times, e com uma violência, uma implacabilidade nunca vistas.
No primeiro momento, ninguém soube o que pensar, o que dizer. Apareceram logo dois ou três paspalhões desfraldando a tese da sabedoria e infalibilidade de todas as vaias.Um colega puxou-me pelo braço e cochichou: " O povo não erra nunca". Eu ia concordar. Súbito, porém, penso que esse mesmo povo salvou Barrabás e condenou Cristo. Enquanto cruscificava o Messias, a multidão carregava o Barrabás na bandeja e de maçã na boca, como um leitão assado.
De mais a mais, pode-se ter dado o caso da " vaia induzida". Parte da crônica, com efeito não sabe admirar, não gosta de admirar, e vive metendo o pau nos nosso jogos e nos nossos craques. Leiam os nossos comentários. Eles só vêem peladas por toda a parte. E assim tentam cavar entre o torcedor e o futebol um abismo irreversível.Pra que essa gana destrutiva e bestial? Amigos, só Freud, em sua tumba poderá explicar o por quê.

Lembro-me de certo crônista que num domingo foi desfeitado pelo caçula, pela mulher e pela criada. Até o vira-latas da família rosnou contra ele. Quando o desgraçado saiu para o Maracanã, ventava fogo.

Claro que, nesta tarde, ele desandou o jogo, os craques, o juiz e os bandeirinhas. E ninguém podia imaginar que, por trás de sua fúria, estavam seus dramas, frustações e vergonhas familiares. Mas voltemos  à vaia. Como era fato novo, não tinhamos meios e modos para um julgamento imediato. E ninguém viu o obvio. Pergunto: que óbvio? Vaiava-se ali o maior futebol do mundo. Sim, vaiava-se o futebol bicampeão do mundo. Outro óbvio, que convém enxergar, é o da tal "vaia induzida" e, portanto sem nenhuma justiça e nenhuma sabedoria.
Esse desamor não levará o Brasil a tricampeonato nenhum. O torcedor precisa saber que, em certa crônica, há uma aridez de três desertos. E a hora é de simpatia, de apoio, de estímulo, de solidariedade. Será que o futebol brasileiro tem que se exilar para ser aplaudigo? Será que nossos times só podem ser amadaos em outros idiomas?

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