sexta-feira, 17 de abril de 2009

Rosário de lágrimas


Eles tinham dois filhos, muitos invernos, e um monte de contas de lágrimas, que enfeitavam os vãos da casa, em tristonhas cortinas. Ela usava lenço sobre os cabelos longos, sempre presos, um vestido de mangas compridas — para não mostrar os braços — olhos tristes, um avental sujo de cinzas, e era sempre assim, até um dia. Ele tinha um acordeão, um par de sapatos sempre gastos, a camisa aberta sobre o peito e óculos escuros, com que tapar tristeza. Ele viajava para longe, onde havia mar e automóveis. Ela viajava pelos campos, plantando milho, entre outras coisas, alecrim. Quando ele voltava, esculpia santos em pedra, ela colhia o milho, o trigo, e produzia milhões de biscoitos. Choveu um dia em que ele partiu, acordeão sobre o peito, os meninos colhendo contas, ela sovando grãos. A chuva encheu o rio, o rio carregou os meninos, e ela pediu a Santa Bárbara que parasse a chuva. Sozinha perseguiu a água, e encontrou os filhos. Sozinha cavou a terra, e plantou os filhos, na esperança que crescessem como pés de milho. Esperou no decorrer de todas as fases da lua, e esperou, e esperou. Eles não brotaram, ela nada colheu, e ele parecia ter se esquecido. Trocou o vestido por calças e saiu a campear o vento, que a fez passar além da curva. Ele sentiu ser hora de regressar. Encontrou a casa vazia, as plantas queimadas e seus filhos plantados na margem do rio. Mergulhou nas águas, tencionando permanecer no fundo, mas elas o lançavam de volta à superfície. Voltou ao trabalho de esculpir santos e tecer rosários com as contas de lágrimas que colhia. Ela se afastava, até que chegou à linha azul que chamavam oceano. Começou a esquecer quem era, vestiu-se com outras roupas, plantou outras sementes, colheu outros frutos. As estações se sucediam, a lua brincava de se banhar no sol, às vezes minguava. Até um dia. Ela caminhava pela feira. Deparou-se com um rosário de contas, era o passado que vinha. Deixou a casa abandonada, passou pela ponte, venceu a curva, seguiu em linha reta, deparou-se com o oceano, continuou caminhando e a encontrou na feira, contas de lágrimas entre os dedos. Ela o seguiu, fazendo o caminho inverso. Atravessou a velha ponte e viu os filhos plantados na margem do rio, viu o campo seco, viu seu marido esculpindo santos. As cortinas pareciam vivas, balançando na janela. Acariciou seus cabelos brancos e preparou biscoitos. Quando olhou o céu, era lua minguante, e os olhos dele já não tinham brilho. Plantou-o às margens do rio, ao lado dos filhos, e ficou esperando que eles brotassem, eternamente.



Simone Santana

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