Os dicionários esclarecem que o substantivo pé-rapado se trata de um brasileirismo cujo significado é o de indivíduo pobretão, de condição humilde, mas também dão a ele, por extensão, o sentido de pessoa sem caráter, de más qualidades, crápula e vagabundo. No entanto, a origem dessa expressão pode ser explicada de algumas formas diferentes: na primeira, a suposição é de que tenha sido criada na segunda metade do século 17 porque o poeta baiano Gregório de Matos Guerra (1633-1696) a utilizou em versos dirigidos a Anica, mulata por quem ele se interessava para determinados fins, e que lhe pedira dinheiro para comprar sapatos:
Um cruzado pede o homem, / Anica, pelos sapatos, / mas eu ponho isso à viola / na postura do cruzado. / Diz que são de sete pontos, / mas como eu tanjo rasgado, / nem nesses pontos me meto, / nem me tiro desses trastos. / Inda assim se eu não soubera / o como tens trastejado / na banza dos meus sentidos, / pondo-me a viola em cacos, / o cruzado pagaria, / já que fui tão desgraçado / que buli co'a escaravelha / e toquei sobre o buraco. / Porém como já conheço / que o teu instrumento é baixo, / e são tão falsas as cordas / que quebram a cada passo, / não te rasgo, nem ponteio, / não te ato nem desato, / que pelo tom que me tanges, / pelo mesmo tom te danço. / Busca a outros temperilhos, / que eu já estou destemperado, / estou para me rasgar / minhas cousas cachimbando. / Se tens o cruzado, Anica, / manda tirar os sapatos, / e se não, lembre-te o tempo, / que andaste de pé rapado. / E andarás mais bem segura, / que isto de pisar em saltos / é susto para quem pisa, / e ao que paga, é sobressalto. / Quem te curte o cordovão, / por que te não dá sapatos? / mas eu, que te rôo o osso, / é que hei de pagar o pato? / Que diria quem te visse / no meu dinheiro pisando? / Diria que quem to deu, / ou era bosta, ou cavalo. / Pois porque não digam isso, / leve-me a mim São Fernando, / se os der, e se tu os calçares, / leve-te logo o diabo.
Gregório de Matos, poeta satírico, tanto fustigou com seus versos os vícios da sociedade colonial, não poupando os poderosos do dia, que acabou provocando a ira do governador da Bahia e por isso foi deportado para Angola, na África. Regressando ao Brasil alguns anos depois, velho, alquebrado e na mais profunda miséria, fixou residência em Pernambuco, onde continuou a viver na boêmia. Sua mordacidade lhe rendeu o apelido de Boca do Inferno, mas ainda assim exerceu grande influência na sociedade brasileira de seu tempo, sendo considerado o iniciador da literatura brasileira porquanto foi o primeiro escritor nascido no Brasil a utilizar temas brasileiros num estilo pessoal que refletia o linguajar da colônia.
A segunda versão está ligada à Guerra dos Mascates, conflito surgido entre as vilas de Olinda e Recife, em Pernambuco, nos começos do século 18 (1710), provocado pelas desavenças e divergências de opiniões e interesses entre a aristocracia pernambucana que demonstrava aversão aos estrangeiros (nativismo), e os portugueses, na sua maioria comerciantes, aos quais os primeiros chamavam desdenhosamente de mascates. O conflito começou quando Recife foi elevada a vila, e o governador da colônia pernambucana, Sebastião de Castro Caldas, que se posicionara ao lado dos comerciantes, começou a proceder as delimitações com Olinda. Houve protestos que redundaram em prisões, o governador acabou sendo ferido por disparo de arma de fogo e por isso proibiu o seu uso pela população, e a conseqüência desse desencontro foi o início do motim em 5 de novembro daquele ano, cujo final só viria a acontecer em 1714. Durante o transcurso dessa revolta, os portugueses passaram a tratar seus adversários pelo apelido de pé-rapado porque, segundo o folclorista Luis da Câmara Cascudo, "os que compunham as tropas da aristocracia rural combatiam sem sapatos, ao contrário da cavalaria, arma nobre de gente de botas".
Já o professor Deonísio da Silva, em “De Onde Vem as Palavras II”, opina que “no Brasil colonial, pés-rapados eram os trabalhadores que produziam riqueza nas lavouras e nas minas. Com seu trabalho, o rei português dom João V (1689-1750) enchia as burras monárquicas de ouro e diamantes vindos do Brasil. Gastou fortunas em doações a ordens religiosas e foi gigantesco o esbanjamento que garantiu a vida luxuosa da corte, a ponto de o seu reino tornar-se a maior nação importadora européia. Mas erigiu também museus, hospitais e a Casa da Moeda, além de providenciar a canalização do rio Tejo. Tudo pago pelos pés-rapados brasileiros”.
Já Reinaldo Pimenta, em “A Casa da Mãe Joana”, explica que “pé-rapado é o João Ninguém que nem sapato tem. Depois de muito caminhar descalço, ele rapa (ra-par, no caso, é o mesmo que raspar) o pé com uma faca para retirar o grosso da sujeira, já que de nada adianta lavar o que, em seguida, vai se sujar. É mais ou menos o argumento da criança para fugir do banho”. Essas são as versões que procuram explicar a origem da expressão pé-rapado, que é usada nos dias de hoje como referência ao indivíduo desprovido de tudo aquilo que a sociedade considera imprescindível nas pessoas de quem valha a pena se aproximar, como dinheiro, prestígio, posição social, educação, etc., etc., etc..
FERNANDO KITZINGER DANNEMANN
Nenhum comentário:
Postar um comentário