Na 194° edição do programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 24 de outubro de 2010, transmissão pela Rádio Clube de Valença 650 KHZ AM apreciamos a leitura da crônica: Esperando o Furação de Affonso Romano de Sant´Anna.
Estava há uma semana atrás na Carolina do Norte, exatamente no estado onde o furação “Floyd” ia bater furiosamente. Na véspera de minha ida, recebi da professora Mônica Rector, que me convidara, um paradoxal email: “o tempo está lindo e há um furação a caminho”.
Quando cheguei o tempo estava realmente lindo. Lindíssimo. A luz do dia perpassava por entre as folhagens dos bosques de carvalhos e pinheiros. Que paz, que harmonia entre as criaturas, a natureza e os objetos. Minha amiga levou-me a passear no bosque ao redor de sua bela casa de madeira, por onde passa um idílico riacho. Mostrou-me pelo chão, troncos abatidos de trinta e tantos carvalhos, que tombaram no furação de 1996.
Um furação está se aproximando e o tempo é lindo.
Sigo com os meus afazeres nas universidades de Chapel Hill e Duke, falando sobre um tema externamente tranqüilo, mas internamente tempestuoso – “Um poeta nos trópicos”. A poesia e os furações estéticos e sociais.
A televisão, no entanto, mostrava o apocalipse se aproximando da Flórida. Vinha a mais de 200 quilômetros por hora, avassalador, numa infernal espiral de água e vento.
Eu olhava pela janela e o sol brilhava. Pensava: “Esse furação vai bater na Flórida e para chegar aqui teria que passar pela Geórgia e Carolina do Sul. Mas a televisão prometia tragédia. A população da costa da Flórida recebe ordens de se retirar. Inicia-se o êxodo com milhares de carros pelas estradas. Os pedágios foram liberados. Caem árvores, inundações ocorrem, cais e píeres tombam n´água.
E a Y[TV anuncia que o furação “Floyd” agora estava vindo para o meu endereço. Com seu olho insano, havia me avistado no meio dos bosques de carvalho e naquela bucólica cada de madeira. Atingira a categoria cinco, equivalente a catástrofe, e atrás dele vinha já outro furação, “Gerd”, igualmente furioso.
Lá vem meu furação subindo a costa e aprendo que a pior tragédia ocorre onde ele pousa desncadeando dezenas de tornados. A televisão me informa que ele escolheu para aterrisar exatamente na minha região.
Em Chapel Hill a população esgota estoques de água mineral, pilhas, baterias e compensados dos supermercados. Compensados são para serem pregados sobre as portas e janelas envidraçadas. Pergunto ao casal que me hospeda, o que fazer. “Nada”- diz Tom- tomar certas precauções e esperar, porque isto é uma loteria, o furação pode descer aqui, adiante ou se desviar”.
Haveria uma recepção para mim naquela noite. Exatamente na noite, em que às 21 horas o furação deveria descer. Sugeri cancelarem o evento, porque imaginei eu e todos os convidados sendo arrebatados como anjos numa espiral cósmica, como só acontecia aos profetas bíblicos.
Penso em ir para um abrigo, pois minha hospedeira é voluntária da Cruz Vermelha, tem uniforme amarelo, botas, crachá e trabalhará num desses abrigos a partir de amanhã cedo. Além do mais, quero ver como se organizam os americanos diante da tragédia anunciada. Com efeito, estavam organizadíssimo. A vizinhança já havia se comunicado por e.mail, um dizendo “sou médico”, outra, “sou enfermeira”, e se colocando á disposição para emergências. A máquina da solidariedade social começava a funcionar. Suspensa a recepção para mim, continuavam os preparativos para a recepção ao furação. E chegam notícias que ele estava atrasado, ia chegar de madrugada, depois, que ia chegar de manhã.
Olho pela vidraça a noite lá fora. Chove e há um vento inquieto. Confirmam-se estragos em cidades a uns 300 quilômetros.
Aguardar assim o furação é como estar na arena enfrentando um touro, mas sem capa e espada.
Aguardar assim o furação é como em certos filmes estar num carro que, de repente, enguiça sobre os trilhos da linha férrea.
Aguardar assim o furação é como estar numa cidade sitiada, sendo atacado pelos mouros ou cruzados.
Aguardar assim o furação é como aquele personagem do conto de Hemingway, que cansado de fugir dos perseguidores deita-se e aguarda o fim.
É assim que se sente o sapo quando o olho da cobra o surpreende e ele, siderado, a vê e espera, impotente, o bote fatal.
Estranhamente, ás dez da noite, como quem está cansado de esperar Godot, desconfiei que a chuva e o vento estivessem me enviando outra mensagem. Não sei exatamente o que era, mas pensei, se ele vier – o touro negro, o minotauro do labirinto, a morte e suas foices – me encontrará tranqüilo.
Resolvi ir dormir, embora a cinco metros de meu quarto vários carvalhos balançassem ao vento me acenando qualquer coisa. Olhei objetos e roupas em torno como a me despedir ou para poder localiza-los no momento de fuga ou resist~encia.
Quando despertei às seis da manhã chovia ainda, mas algo me dizia que a elipse da morte havia se afastado de minha cabeceira. Dormi até as 8h, com o pensamento mágico de quem se diz: quando vier, se vier, me defenderei, olharei no olho do olho da fera.
De novo despertei. E conferi na televisão que a fatalidade havia seguido noutra direção. Abatera outras casas, afundara outros barcos, destroçara outras famílias e propriedades.
Com efeito, eu havia sido poupado.
Como se tudo aquilo não houvesse sido mais que um pesadelo, no final da tarde desse dia que se prometera apocalíptico, o sol brilhou. Brilhou como se sempre estivera ali, como se nenhuma sombra da morte houvesse jamais ameaçado as criaturas.
Dia seguinte saí passeando pelas ensolaradas alamedas de carvalhos e pinheiros, olhando a vida no olho, como no olho, em meio aos furações. Vou aprendendo a olhar a morte.
Affonso Romano de Sant`Anna – retirado do livro: Coleção melhores crônicas . Seleção e prefácio Letícia Malard
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