Na 370° edição do
Alacazum Palavras Para Entreter, apresentação da escritora e
locutora Celeste Martinez, que foi ao ar no dia 28 de setembro de
2014, das 8 às 9 h transmissão ao vivo 87,9 Rio Una FM, apreciamos a leitura do texto: Cem anos de perdão de Clarice Lispector.
Cem anos de Perdão
Quem nunca roubou
não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais
poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife
inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam
no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brinávamos muito de
decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu”.
“Não, eu já disse que os brancos são meus”. “Mas esse não é
totalmente branco, tem janelas verdes.” Parávamos às vezes longo
tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa
das brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma
que parecia umm pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à
frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no
seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo.
Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que
nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu
coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu
queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por
ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se
expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as
janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma
rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No
meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de
possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria
cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude
mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão.
Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha
amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas
da casa e a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os
transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o
portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve
rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de
menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos
pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um
século de coração batendo.
Eis-me afinal diante
dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é
mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me
com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente –
ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também
de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei
segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos
literalmente para longe da casa.
O que é que fazia
eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa,
coloquei-a num copo d´agua, onde ficou soberana, de pétalas grossas
e aveludadas, com vários entretons de ros-chá. No centro dela a cor
se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que
simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a
menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a
rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela
glória que ninguém me tirava.
Também roubava
pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto da casa, rodeada por
uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da
igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe
era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não
via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém
vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da
sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da
frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga
madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentadas. Colhia
várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu
jogava fora.
Nunca ninguém
soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos
de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para
se colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.
Clarice Lispector,
em Felicidade Clandestina