Paisagem Extraviada
Que me pode trazer esta noite de São João
além do vento frio e desse cheiro de fumaça?
Acaso poderei buscar a mão do meu pai
erguendo fogueiras na saudação às estrelas?
Sinto frio e estou cansada
ainda que a voz de minha mãe sussurre-me
uma outra noite de carinho
e de frases de esperança...
Tenho anotado no voluteio dos anos
os ruídos continuados, intermitentes:
fogos de artifício, música, assobios, estalos de madeira verde
crepitando a úmida seiva contra o hálito da chama...
E apesar das brasas em cada porta,
minha rua é um livro de páginas em branco,
à espera de fogueiras imprecisas
juntas pela mão, sílaba à sílaba
na linguagem do sonho convertido nessa mensagem
de alimento ao meu instante.
Ante a artificialidade deste traje de protagonista,
doem-me os idílios longínquos
ao pé das fogueiras extintas...
Não mais encontrar os meus
reunir os amigos no brinde aos vivos laços
aos compadrios,
selados mo licor mais doce de sabor eterno...
Como a canjica de tempero arranjado por Deus melhor do mundo!
Feita por minha mãe, na herança da outra mãe...
Depois... não se pode percorrer o itinerário
sem perdê-lo um pouco cada vez.
Meus olhos são a fonte de toda névoa sobre as casas,
as ruas...
Daqui a pouco o silêncio me trará de volta
ao fundo triste e bocejante das outras noites
sem olhos, nem ouvidos.
Entre gritos dos primeiros galos, a noite avança.
É, na verdade, saudade o que tenho.
A joanina noite recomposta me alimenta
e dela me entretenho, reinventado o roteiro
que me faça viver, dormir e me alcançar.
Em algum lugar, um galo canta na segunda voz...
Há manhã no ar
e em mim, os ecos últimos das noites de São João
se vão como uma canção em ré menor
a se despedir em sol maior.
Rosângela de Góes Figueiredo
Livro: Coração na Boca
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