sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Fragmentos iniciais do conto SARAPALHA de João Guimarães Rosa

Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela: três vendinhas, o chalé e o cemitério: e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.

Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar já esteve nos mapas, muito antes da malária chegar.

Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava – da tremederia que não desamontava” – matando muita gente.

-Talvez que até aqui ela não chegue... Deus há-de...

Mas chegou; nem dilatou para vir. E foi um ano de tristezas.

Em abril, quando passaram as chuvas, o rio – que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar – desengordou devagarinho, deixando poços redondos num brejo de ciscos: troncos, ramos, gravetos, coivara; cardumes de mandis apodrecendo; tabaranas vestidas de ouro, encalhadas, curiimatãs pastando barra na invernada; jacarés, de mudança, apressados; canoinhas ao seco, no cerrado; e bois sarapintados, nadando como búfalos, comendo o murerê-de-flor-roxa flutuante, por entre as ilhas do melosal. Então, houve gente tremendo, com os primeiros acessos da sezão.

- Talvez que para o ano ela não volte, vá s´embora...

Ficou. Quem foi s´embora foram os moradores: os primeiros para o cemitério, os outros pro aí a fora, por esse mundo de Deus. As terras não valiam mais nada. Era pegar a trouxa a ir deixando, depressa, os ranchos, os sítios, as fazendas por fim. Quem quisesse, que tomasse conta.

Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – ora-pro-nobis! Ora-pro-nobis! – apontou caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-de-boi e o capim-mulambo, já donos da rua, tangeram-na de volta; e nem pode recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e com o gervão em flor. E, atrás da Maria-preta e da vassourinha, vinham urgentes, do campo – ôi-ái! – o amor-de-negro, com os tridentes das folhas, e fileiras completas, colunas espertas, do rijo assa-peixe. Os pasarinhos espalhavam sementes novas. A gameleira, fazedora de ruínas, brotou com o raizame nas paredes desbarrancadas. Morcegos das lapas se domesticaram na noite sem fim dos quartos, como artistas de trapézio, pendentes dos caibros. E aí, então, taperização consumada, quando o fedegoso em touças e a bucha em latadas puderam retomar seu velhíssimo colóquio, o povoado fechou-se em seus restos, que nem o coscorão cinzento de uma tribo de marimbondos estéreis.
Mas, é só andar três quilômetros para cima, brejo a-dentro , beira-rio, para se achar algum morador.

O mosquito fêmea não ferroa de-dia; está dormindo, com a tromba repleta de maldades; somente as larvas, à flor do charco, comem-se uma às outras, brincando com as dáfnias e com as baratas-d`água; as touceiras cheirosas do capim-gordura espantam para longe a urutu-coatiara; a jararaquinha-da-barriga-vermelha émasa, não morde; e essa outra oobras claras, que passam de cabeça alçada, em nado de campeonato, agora, mesmo que queiram, não pdoerão morder. Mas é bom não pisar forte naquelas esponjas verdes, que costuma haver uma cisterna profunda, por baixo das folhas dos aguapés.

É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantelada; uma cerca de pedra-seca, do tempo de escravos; um rego murcho, um moinho parado; um cedro alto, na frente da casa; e, lá dentro, uma negra, já velha, que capina e cozinha o feijão. Tudo é mato, crescendo sem regra; mas, em volta da enorme morada, pés demilho levantam espigas, no chiqueiro, no curral e no eirado, como se a roça se tivesse encolhido, para ficar mais ao alcance da mão.
E tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborcado, cabisbaixos, quentando-se ao sol.


João Guimarães Rosa

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