quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Quadro: Hora do Conto

Manguezal
A sorte avançou na Preguiça:

- Mentira mentirosíssima. O sujeito da história anterior engoliu essa ai?

-Não só engoliu, como se encheu de lágrimas.

-Muito trouxa neste mundo! Tenho outra versão, bem melhor: antes de mais nada, a mãe nunca foi de carne e osso, não se casou e siri também nunca foi pastel. Vê se esquece essa bobajada toda! A maré foi uma coisa in-vem-ta-da.

-Há, há.

-Silêncio! Foi inventada, sim, senhora. Para acabar com a tal divisão do dia em dois. Essa coisa ultrapassada de sol e lua, noite e dia. Nada disso! A partir de então, o dia se dividiria em quatro marés: maré alta- maré baixa, maré alta- maré baixa E tem mais, quem criou a maré foi uma assembléia. Decreto-lei, assinado e registrado em cartório, a quem interessar possa, obrigado, não há de quê, ponto final.

-Essa é a sua versão.

-Agora, mudando de assunto... Quem vai trocar a água do balde dos siris?

-Aqui só estamos eu e você. E eu é que não vou.

Chega uma hora em que é preciso traçar algumas considerações sobre as manias da sorte. De uma coisa todo mundo já sabe: a sorte pensa que tudo se resolve com um passe de mágica. Mas ela morre de medo do sobrenatural, preferindo atribuir alguns feitios às artimanhas do Acaso. Quer ver só? Quem acorda mais cedo e assopra a nata do leite? Quem elabora a trama dos sonhos? Quem corta a melancia em cubos e elimina os caroços? Quem? O acaso, ela pensa, uma vez que todas essas coisas já deveriam vir prontinhas da fábrica. Se a sorte pudesse escolher um funcionário assistente, escolheria o Acaso. Muito competente, muito bem-humorado e discreto, muito discreto, o acaso. Ninguém repara nele, tem gente que acha até que ele não existe. Quando se vê, algo de extraordinário já aconteceu.

Mas voltemos à pergunta que ficou esperando:

-Quem vai trocar a água do balde dos siris?

-Aqui só estamos eu e você. E eu é que não vou – Isso foi a preguiça que disse:

-Vamos tirar no palito, então.

-Nunca mais faço aposta com a sorte.

-Medrosa.Quer saber de uma coisa?

Pegou o balde e se levantou. Pela primeira vez, a sorte, elazinha da silva, toma a iniciativa, deixando o acaso de molho. Depois arregaçou a barra da calça e desceu da ponte.
Maré baixando, beira do rio, a sorte com água até os tornozelos. A calça pescando siri, a água dos siris na mesma temperatura da água de fora. O balde boiando no rio, tão perto, tão longe, para desespero desse crustaceozinhos azuis.
Mas o que interessa é a sorte, seus pés, os olhos brincando de fazer foco aqui no balde, lá adiantee, lá adiante, aqui no balde...

A preguiça reclamou da demora.

-Só mais um minuto, preguiça, meus pés estão na água.

Como se isso servisse de justificativa.

Quer saber? Que justificativa melhor do que esta? Uma gostosura de água morna em volta dos pés, desafiando a curva mais inatingível, a dobra, a linha mais inescrutável, aquela entre o dedo mindinho e o seu-vizinho. Um peixe modiscando de vez em quando... Silêncio, por favor! Naquele lugarzinho, a sorte sentiu um arrepio esquisito como se decifrasse um enigma indecifrável.
Ali bestamente.

A preguiça que aguardasse mais um pouco. Quem mandou? Podiam muito bem te esperado a hora em que a maré encostasse novamente na ponte para trocar a água do balde, não podiam?
Mas os dedos dos pés da sorte começaram a enrugar, culpa da mesma água morna gostosa de antes. Ou seja, hora de voltar para a ponte, hora de encher o balde, hora de levar os siris para cozinhar.

Foi só por descaso do acaso que a sorte e a preguiça vieram ao mangue.

Entre a cheia e a vazante, homens e mulheres se ocupam com seus afazeres. A maré se ocupa de seis em seis horas. Meninos se ocupam com aratus, chies, qualquer tipo de vida pequena. E todos, na falta do que fazer, se ocupam da vida dos meninos.
Depois de um punhado de histórias, a preguiça e a sorte deixaram o mangue famintas, debaixo da tarde de mosquitos.
Saíram ainda agora, à procura de uma lata furada e um bocado de brasas, levando dois siris para cozinhar.


Roger Mello- Livro: Meninos do Mangue




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