sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Quadro: A hora do Conto

Na 115° edição do ALACAZUM, prosseguimos com a leitura do conto: "Sarapalha" de João Guimarães Rosa. Vale ressaltar o envolvimento do ouvinte-leitor com este quadro e principalmente com as leituras de maior duração. Este conto: "Sarapalha", iniciado na 114° edição, empolgou tanto que o público exigiu que continuasse a leitura. Na próxima edição continuaremos. ALACAZUM PARA VOCÊ!

Continuação do conto: ‘SARAPALHA” de João Guimarães Rosa

O rio, lá adiante, vê-se agora a três dimensões; porque o rolo da névoa, alagartado, vai, volta a volta, pela várzea, como fumaça cansada que só quer descer e adormecer.
Primo Ribeiro dormiu mal e o outro não dorme quase nunca. Mas ambos escutaram o mosquito a noite inteira. E o anofelino é o passarinho que canta mais bonito, na terra bonita onde mora a maleita.
É de-tardinha, quando as mutucas convidam as muriçosas de volta para casa, e quando o carapaña rajado mais o mossorongo cinzento se recolhem, que ele aparece, o pernilongo pampa, de pés de prata e asas de xadrez. Entra pelas janelas, vindo dos cacos, das frinchas, das taiobeiras, das bananeiras, de todas as águas, de qualquer lugar.
- Olha o mosquito-borrachudo nos meus ouvidos, Primo!...
- É a zoeira do quinino... Você está tomando demais...
Vem soturno e sombrio. Enquanto as fêmeas sugam, todos os machos montam guarda, psalmodiando tremido, numa nota única, em tom de dó. E, uma a uma, aquelas já fartas de sangue abrem recitativo, esvoaçantes, uma oitava mais baixo, em meiga voz de descante, na orgia crepuscular.
Mas, se ele vem na hora do silêncio, quando o quinino zumbe na cabeça do febrento, é para consolar. Sopra, aqui e acolá, um gemido ondulado e sem pouso... Parece que se ausenta, mas está ali mesmo: a gente chega a sentir-lhe os feixes de coxas e pernas, em linhas quebradas, fazendo cócegas, longas, longas... Arrasta um fio, fino e longínquo, de gonzo, fanho e ferenho, que vem de longe e vai dar no longe... Estica ainda mais o fiapo amarelo de surdina. Depois o enrola e desenrola, zonzo, ninando, ninando...E, quando a febre toma conta do corpo todo, ele parece, dentro da gente, uma música santa, de outro mundo.
Manhãnzinha fria. Quando os dois velhos – que não são velhos – falam, sai-lhes da boca uma baforada branca, como se estivessem pitando. Mas eles ainda não tremem: frio mesmo frio vai ser d´aqui a pouco.
Há mais de duas horas que estão ali assentados, em silêncio, como sempre. Porque, faz muito tempo, entra ano e sai ano, é toda manhã assim. A preta vem com os gravetos e a lenha. Os dois se sentam no cocho, Primo Argemiro da banda do rio, Primo Ribeiro do lado do mato. A preta acende o foguinho. O cachorro corre, muitas vezes, até lá na tranqueira, depois se chega também cá para perto. A preta traz café e cachaça com limão. Primo Argemiro sopra os tições e ajunta as brasas. E, um pouco antes ou um pouco depois do sol, que tem um jeito de aparecer sempre bonito e sempre diferente, Primo Ribeiro diz:
- Ei, Primo, aí vem ela...
-Danada!...
-Olhe` ele aí... o friozinho nas costas...
E quando Primo Ribeiro bate com as mãos nos bolsos, é porque vai tomar uma pitada de pó. E quando Primo Argemiro estende a mão, é pedindo o corniboque. E quando qualquer dos dois apóia a mão no cocho, é porque está sentindo falta-de-ar.
E a maleita é a “danada!; “coitadinho” é o perdigueiro: “eles”, a gente do povoado, que não mais existe no povoado; e “os outros” são os raros viajantes que passam lá em –baixo, porque não quiseram ou não puderam dar volta para pegar a ponte nova, e atalham pelo vau.
Primo Argemiro olha o rio, vendo a cerração se desmanchar. Do colmado dos juncos, se estira o vôo de uma garça, em direção à mata. Também, Primo Argemiro não pode olhar muito: ficam-lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, que doem e choram, por si sós, longo tempo.
-Está custando, Primo Argemiro...
-É do remédio... Um dia ele ainda há-de dar conta da danada!...
O sol cresce, amadurece. Mas eles estão esperando é a febre, mais o tremor. Primo Ribeiro parece um defunto – sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos, desbrilhados, e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, sempre a escorar dos lados a bambeza do corpo. Mãos moles, sem firmeza, que deixam cair tudo quanto ele queira pegar. Baba, baba, cospe, cospe, vai fincando o queixo no peito: e trouxe cá para fora a caixinha de remédio, a cornicha de pó e mais o cobertor.
- O seu inchou mais, Primo Argemiro?
-Olha aqui como é que está... E o seu, Primo?
- Hoje está mais alto.
-Inda dói muito?
- Melhorou.
É da passarinha. No vão esquerdo, abaixo das costelas, os baços jamais cessam de aumentar. E todos os dias eles verificam qual foi o que passou à frente.
Um barulho. É o cachorro magro, que agita as orelhas dormindo, e dorme alertado, com o focinho cúbico encostado no chão.
Primo Argemiro espera um pouco. Aí, ele se espanta. De há muito anos, dia trás dia, tem a hora do perdigueiro dormir ali perto, e a horinha do perdigueiro sacudir as orelhas, que é o momento de Primo Ribeiro dizer:
- Vida melhor do que a nossa...
Para Primo Argemiro, eternamente, responder:
- É sim...
E agora, Primo Ribeiro não falou. Por quê? Ficou mudo, espiando as três galinhas, que ciscam e catam por ali. Por quê?... Está desfiando a beirada do cobertor, com muita nervosia de unhas. É preciso perguntar-lhe alguma coisa.
-Será que chove, Primo?
-- Capaz.
- Ind`hoje? Será?
-Manhã.
-Chuva brava, de panca?
-Às vez...
-Da banda de riba?
- De trás.


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