quinta-feira, 30 de junho de 2016

Na 443° edição do Alacazum palavras para entreter


Na 443° edição do programa radiofônico Alacazum Palavras Para Entreter, apresentado pela escritora Celeste Martinez e que foi ao ar no dia 27 de março de 2016, das 8 às 9h, domingo, transmissão ao vivo Rio Una FM 87,9, apreciamos a crônica de Rubem Braga intitulada: Quem sabe Deus está ouvindo, contido no livro Para gostar de ler


Quem sabe Deus está ouvindo

Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia.
Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:
- Você vai criar um cajueiro aí?
Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.
- Mais é melhor arrancar logo, não é?
Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso - mas confesso que havia nele um certo remorso. Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolicee permitir que ele crescesse ali mais alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mais isso a empregada não sabe, ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão - disso eu não seria capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ele o fizer, darei de ombro e não pensarei mais no caso; mais que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mais igualmente ignaros: eu, o deus da Vida; ela o da Morte.
Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa - " seu Rubem o cajuirinho...." mais o telefone tocou, fui atender, e a frase não se completou. Agora mesmo, ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou para ele a mudinha.
Veio me mostrar:
- Eu comprei um vaso...
-Ahn...
Depois de um silêncio, eu disse:
-Cajueiro sente muita a mudança, morre à toa...
Ela olhou a plantinha e disse com convicção:
-Esse aqui não vai morrer, não senhor.
Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse pela compra do vaso, e ficara aliviada com minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse sorrindo, uma frase profética, dita apenas pro dizer:
-Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!
Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com cera gravidade:
- É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...
Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores.

Rubem Braga

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