terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quase Doutor de Lima Barreto

Na 246° edição do programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 20 de novembro de 2011, das 8 às 9 da manhã de domingo, transmissão Rio Una FM 87,9 dando continuidade ao tema sobre Novembro Negro, apreciamos uma crônica do Lima Barreto intitulada: Quase Doutor.

A nossa instrução pública cada vez que é reformada, reserva para o observador surpresas admiráveis. Não há oito dias, fui apresentado a um moço, aí dos seus vinte e poucos anos, bem posto em roupas, anéis, gravatas, bengalas, etc. O meu amigo Seráfico Falcote, estudante, disse-me o amigo comum que nos pôs em relações mútuas.
O senhor Falcote logo nos convidou a tomar qualquer coisa e fomos os três a uma confeitaria. Ao sentar-se, assim falou o anfitrião:
- Caxero traz aí quarqué cosa de bebê e comê.
Pensei de mim para mim: esse moço foi criado na roça, por isso adquiriu esse modo feio de falar. Vieram as bebidas e ele disse ao nosso amigo:
-Não sabe Cunugunde: o véio tá i.
O nosso amigo comum respondeu:
- Deves então andar bem de dinheiros.
-Quá ele tá i nós não arranja nada. Quando escrevo é aquela certeza. De boca, não se cava... O véio óia óia e dá o fora.
Continuamos a beber e a comer alguns camarões e empadas. A conversa veio a cair sobre a guerra européia. O estudante era alemão dos quatro costados.
-Alamão, disse ele, vai vencer por uma força. Tão aqui, tão em Londres.
-Qual!
-Pois óie: eles toma Paris, atravessa o Sena e é um dia inguelês.
Fiquei surpreendido com tão furioso tipo de estudante. Ele olhou a garrafa de vermouth e observou:
-Francês, tem muita parte... Escreve de um jeito e fala de outro.
-Como?
-óie aqui: não está vermouth, como é que se diz "vermute"? Pra que tante parte?
Continuei estuporado e o meu amigo ou antes, o nosso amigo parecia não ter qualquer surpresa com tão famigerado estudante.
-Sabe, disse este, quase fui com o dotô Lauro.
-Por que não foi? perguntei
-Não posso andar por terra.
-Tem medo?
-Não. Mas óie que ele vai pro Mato Grosso e não gosto de andá pelo mato.
Esse estudante era a coisa mais preciosa que tinha encontrado na minha vida. Como era ilustrado! Como falava bem! Que magnífico deputado não iria dar? Um figurão para o partido da Rapadura.
O nosso amigo indagou dele em certo momento:
-Quando te formas?
-No ano que vem.
Caí das nuvens Este homem já tinha passado tantos exames e falava daquela forma e tinha tão firmes conhecimentos.
O nosso amigo indagou ainda:
- Tens tido boas notas?
- Tudo. Espero tirá a medáia.

Careta, 8.5.1915

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