domingo, 9 de março de 2008

QUADRO: A HORA DA POESIA

Maria Bonita
Myriam Fraga

Esta noite em Angico
a brisa é calma.
No silêncio farfalham
minhas anáguas
como farfalham asas
E no escuro minha carne
cheira a mato.
Vem meu amor e lavra
este roçado
como quem quebra
um cântaro,
como quem lava
a casa;
Águas frescas na tarde.
Tuas límpias carícias,
teus dedos como pássaros
e teu corpo que arde
como estrelas
no espaço.
Não quero tua candeia,
só meus sonhos acesos
e eu te direi de nácar
terciopelo.
coisas antigas, pelo de
leoa; voz de cego na feira,
Não quero teu braseiro,
tua intensa
cintilação que queima
meus vestidos
Só quero a tua volta,
tua presença
iluminando a noite
que me cerca
como uma luz acesa
no postigo.
Que sabes de minha vida
além da morte
inquieta que me ronda?
Que sabe desta chita
destes panos
que envolvem minha nudez
como uma chama?
São teus olhos
carvões que me devoram,
são teus beijos
fosforescências de mel,
travo forte das frutas.
Teus dedos como setas
apontam meu destino:
meu caminho,
na planta de teus pés;
meu horizonte,
no risco de tuas mãos
e meus cabelos
esparsos sobre a relva
em que me habitas.
Sou teu medo, teu
sangue,
sou teu sono,
tua alpercata
de couro,
teu olho cego, miragem
dos vidros
com que miras
a mira do mosquete.
Sou teu sabre,
fação com que degolas.
Sou o gosto de sal,
veneno que espalharam
no prato.
Sou a colher de prata
azinhavrada. Sou teu
laço
Teu lenço
no pescoço.
Sou teu chapéu de
couro
constelado
com estrelas de prata
sou a ponta
do teu punhal buscando
o peito dos macacos.
Sou teu braço,
a cartucheira cruzada
sobre o peito,
sou teu leito
de angico e alecrim
Sou a almofada
em que deitas a face,
O cheiro agreste
Dos homens que
mataste.
Sou a bainha
e a lâmina é meu
resgate.
Sou tua fera.
Sussuarana
No escuro- bote e salto.
Jaguatirica acesa nestes
altos
mundéus de teu alarme.
Sou o parto
da morte que te
espreita.
Sou teu guia
tua estrela, teu rastro, tua
corja.
Sou tua mâe que chora,
sou tua filha. Teu
cachorro fiel,
tua égua parida.
Sou a roseta na carne,
o lombo nas esporas.
Sou montaria e cavalo,
fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
sou teu gado,
tua mulher, tua terra,
tua alma,
tua roça. Coivara
que incendeias e apagas.
Tua casa.
Areia no sapato.
Sou a rede
aberta como um fruto,
sou soluço. Fome escura
de poço. Sou a caça
abatida. Lebre e gato,
coisas quentes ao tato.
Vem, meu dono, meu
sócio,
meu comparsa.
Desarma o teu cansaço,
desata a cartucheira,
a noite é farta
como besta no cio.
A noite é vasta.
Vem devagar
e habita meu silêncio
como se habita
um claustro.
Lâminas. Como espadas.
Pasto de aves meu corpo
que trabalhas
como quem corta e lavra.
Desata a cartucheira,
teu campo de batalha
sou eu.
Por um momento
esquece o que te mata
- fúria e falta -
e enquanto a noite é
calma
Vem e apaga
na pele do meu peito
esta fome sem data.

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