domingo, 20 de julho de 2008

A Mariquita



Todo bairro tem seus ícones, seus personagens que, de tanto referidos, terminam por serem transformados em representações da história da comunidade. Ali pelos anos trinta do século XX, todo o Rio Vermelho - Mariquita - gravitava em torno da pedreira do senhor Adolfo Moreira. Ali, onde hoje há um espaço de estacionamento do Hotel que foi Meridien e que agora tem outro nome, parece que é Pestana, se não me falha a memória, havia uma pedreira que todos os dias detonava um cartucho de dinamite, em plena cidade de Salvador, área urbana.
Ninguém estava reclamando, estava todo mundo tranquilo, detonava um canudo com um cartucho de dinamite às três da tarde e as pessoas, longe de se zangarem, conferiam os seus relógios, porque o paradigma era a denotação do dinamite da pedreira. Esse Adolfo Moreira, homem rico, morava numa casa que mais tarde, com a morte dele, e por sua vontade testamentária, se transformou numa casa de orfãs - Abrigo Hercília Moreira, nome da mãe dele. O Asilo foi doado a umas freiras que o mantêm ainda hoje.
Esse homem era um tipo curioso. Para se ter uma idéia: era o único morador do Rio Vermelho que, na época, tinha um automóvel. Era um homem gordíssimo. O automóvel já estava meio empenado com o peso dele de um lado, mas era o único: o carro do senhor Adolfo Moreira.
Ele se dava, não direi a um luxo, que era encanto para os garotos amigos dos seus filhos. Tinha, em casa, um viveiro de pássaros enorme. E era uma armação de ferro forrada de grades de tela e permitia que um homem lá entrasse com folga. Um homem, ou dois, ou três. Os passarinhos ficavam ali dentro, com algum ar de liberdade. Havia um cidadão que cuidava disso, com obrigação de colocar comida e água.
Um dia, era tempo de quaresma e o homem que devia cuidar dos passarinho, ou foi negligente ou teve um problema, qualquer, o fato é que ele não cuidou dos bichos. O senhor Adolfo Moreira surpreendeu os passarinhos dele com sede, e alguns já caídos, com fome. Ele pegou os meninos que estavam por ali, inclusive a mim e perguntou:
- Não é tempo de quaresma, agora?
- É, sim senhor. Foi a respeitosa resposta...
- Não é tempo de tomar bênção às mães?
- É, sim senhor.
- Já tomou à sua?
- Já sim, senhor. Não estou sabendo para onde ia com essa conversa toda. Vimos que pegou a porta do viveiro, abriu, segurou uma toalha que estava perto e saiu espantando, soltando os passarinhos.
- Vai cambada, vai tomar bênção às suas mães que é tempo de quaresma!
E espantou os passarinhos todos, que, desabituados à liberdade, foram na grande maioria morrer na praia em frente.

Cid Teixeira do livro: Histórias: minhas e alheias

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