sábado, 12 de abril de 2008

O GOSTO DO MAL E O MAU GOSTO

Na sociedade tecnológica se desfaz a noção de espaço, pois, graças à rapidez das informações, o tempo real exerce tirania sobre o espaço real: o mundo está em cada local. Assumem relevo a imediatidade e a interatividade, em razão do que na civilização da pressa não há lugar para a meditação, para a vivência do hábito da leitura e da análise da realidade, para o aprofundamento de dúvidas existenciais. O habitante do tempo, e não mais do espaço, vive o desenraizamento: está a todo o tempo em toda parte. Como destinatário de completas informações sobre o acontecido a cada instante, não mais se permitem ao homem o silêncio, o recolhimento, a reflexão, a intimidade. Na época do Orkut e do YouTube se torna público o privado e ocorre a rápida obsolescência do up to date. A sociedade torna-se histérica na busca incessante do novo que satisfaça, sôfrega na busca de emoções que não sejam virtuais por meios virtuais.
Dentro dessa atmosfera, as relações interpessoais fundam-se apenas na possibilidade de o outro satisfazer necessidades sensíveis. O outro se torna um objeto e logo cada qual vira também objeto do outro, com perda do recíproco respeito. Este quadro moral levou a duas situações dramáticas: o gosto do mal e o mau gosto.
O gosto do mal está espantosamente relatado no livro La Mort Spetacle - enquête sur l’horreur-realité, de Michela Marzano, ao mostrar a barbárie interior, consistente na busca crescente de registros na internet de filmes sobre sevícias, torturas e até assassinatos reais, efetivamente ocorridos, muitas vezes só para serem divulgados.
O horror vira espetáculo. Hoje se multiplicam as filmagens ou fotografias com celular de cenas de brutalidade contra as pessoas, para puro e simples divertimento. O enforcamento de Saddam Hussein, com o corpo balançando no vazio, correu a internet. Um site francês, “Vídeos de Decapitação”, revela Marzano, instalou fórum de discussão acerca da decapitação de Nicholas Berg no Iraque. As reações dos internautas transitaram entre o fascínio e a indiferente discussão sobre a qualidade da filmagem. A tragédia do Iraque tornou-se distração. Fora estas cenas tornadas públicas por “autoridades”, difunde-se o happy slapping (tapa divertido), ou seja, a difusão de filmes e fotografias de agressões à integridade física ou sexual de alguém, em que o sofrimento vira fonte de entretenimento. Lembro, entre tantos relatos de Michela Marzano, a difusão em escola de cenas de violação de uma colegial por diversos colegas, em Nice, em abril de 2007. A violência contra o outro se transmuda em divertimento compartilhado, pelo celular e pela internet.
De outra parte, os meios de comunicação, na busca desenfreada de audiência, recorrem a programações que satisfaçam mais facilmente os instintos do telespectador. Os índices de audiência passam a ser a régua pela qual se faz o juízo positivo ou negativo de um programa televisivo. Rompem-se, na conquista de índices de popularidade, as fronteiras éticas. Programas como o Big Brother indicam a completa perda do pudor, ausência de noção do que cabe permanecer entre quatro paredes. Desfaz-se a diferença entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado. Assim, expõe-se ao grande público a realidade íntima das pessoas por meios virtuais, com absoluto desvelamento das zonas de exclusividade. A privacidade passa a ser vivida no espaço público.
O Big Brother Brasil, a Baixaria Brega do Brasil, faz de todos os telespectadores voyeurs de cenas protagonizadas na realidade de uma casa ocupada por pessoas que expõem publicamente suas zonas de vida mais íntima, em busca de dinheiro e sucesso. Tentei acompanhar o programa. Suportei apenas dez minutos: o suficiente para notar que estes violadores da própria privacidade falam, em péssimo português, obviedades com pretenso ar pascaliano, com jeito ansioso de serem engraçadamente profundos.
Mas o público concede elevadas audiências de 35 pontos e aciona, mediante pagamento da ligação, 18 milhões de telefonemas para participar do chamado “paredão”, quando um dos protagonistas há de ser eliminado. Em sites da internet se pode saber do dia-a-dia desse reino do despudor e do mau gosto. As moças ensinam a dança do bumbum para cima. As festas abrem espaço para a sacanagem geral. Uma das moças no baile funk bebe sem parar. Embriagada, levanta a blusa, a mostrar os seios. Depois, no banheiro, se põe a fazer depilação. Uma das participantes acorda com sangue nos lençóis, a revelar ter tido menstruação durante a noite. Outra convivente resiste a uma conquista, mas depois de assediada cede ao cerco com cinematográfico beijo no insistente conquistador que em seguida ridiculamente chora por ter traído a namorada à vista de todo o Brasil. A moça assediada, no entanto, diz que o beijo superou as expectativas. É possível conjunto mais significativo de vulgaridade chocante?
Instala-se o império do mau gosto. O programa gera a perda do respeito de si mesmo por parte dos protagonistas, prometendo-lhes sucesso ao custo da violação consentida da intimidade. Mas o pior: estimula o telespectador a se divertir com a baixeza e a intimidade alheia. O Big Brother explora os maus instintos ao promover o exemplo de bebedeiras, de erotismo tosco e ilimitado, de burrice continuada, num festival de elevada deselegância.
O gosto do mal e o mau gosto são igualmente sinais dos tempos, caracterizados pela decomposição dos valores da pessoa humana, portadora de dignidade só realizável se fixados limites intransponíveis de respeito a si própria e ao próximo, de preservação da privacidade e de vivência da solidariedade na comunhão social. O grande desafio de hoje é de ordem ética: construir uma vida em que o outro não valha apenas por satisfazer necessidades sensíveis. Proletários do espírito, uni-vos, para se libertarem dos grilhões da mundialização, que plastifica as consciências.
Estado de São Paulo, sábado, 2 de fevereiro de 2008
Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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