quarta-feira, 11 de março de 2009

Conto: Sarapalha




Continuação do conto: “Sarapalha” de João Guimarães Rosa



O passopreto, chefe dos passopretos da margem esquerda, pincha num galho de cedro e convoca os outros passopretos, que fazem luto alegre no vassoural rasteiro e compõem um Kraal nos ramos da capoeira-branca. Vão assaltar a rocinha; mas, antes, piam e contrapiam, ameaçando um hipotético semeador:
-Finca, finca, qu’eu’ranco! Que’eu ranço!...
Sobem, de escantilhão, para a copa da árvore, como um borrifo de tinteiro. Gritam, gritam. Daí, para os pés de milho, descaem aos flocos, que nem os torrões da última pazada de um foguista. Tão sabidos, que as grimpas de onde saíram balançam, mas não há a menor agitação nos sabres, nem nos colmos e nem nas espigas do milharal.
Podem zombar, podem chamar o resto dos melros, podem comer o milho todo e o arrozal já selvagem. Porque, mais da metade de uma hora é passada, e nada dos dois homens se mexerem de onde estão.
Mas Primo Ribeiro nunca teve esses olhos estúrdios e nem esse ar de fantasma. E Primo Argemiro tem de puxar qualquer conversa:
-Olha, Primo, se a gente um dia puder sarar, eu ainda hei de plantar um roça, no lançante que trepa para o espigão. Deve de ser bom a gente capinar lá em riba, de manhã cedinho... Tem uma Noruega, lá atrás, cheia de samambaia e parasita roxa. Eu havia de fazer uma roça de três quartas, mas com uns cinco camaradas no eito, todo-o-mundo cantando e puxando o cacumbú...
-P’ra que, Primo Argemiro?... A gente nem tem p’ra quem deixar...
Silêncio. Passopretos. Silêncio. Ciscado das galinhas. Passopretos. Silêncio. Primo Ribeiro:
- Primo Argemiro!
E, com imenso trabalho, ele gira no assento, conseguindo pôr-se de-banda, meio assim.
Primo Argemiro pode mais: transporta uma perna e se escancha no cocho.
- Que é, Primo Ribeiro?
-Lhe pedir uma coisa... Você faz?
- Vai dizendo, Primo.
-Pois então, olha: quando for a minha hora, você não deixe me levarem p’ra o arraial... Quero ir mas é p’ra o cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda é chão de Deus... Você chama o padre, bem em-antes... E aquelas coisinhas que estão numa capanga bordada, enrolada em papel-de-venda e tudo passado com cadarço, no fundo da canastra.... se rato não roeu.... você enterra junto comigo... Agora eu não quero mexer lá... Depois tem tempo... Você promete?
- Deus me livre e guarde, Primo Ribeiro.... O senhor ainda vai durar mais do que eu.
- Eu só quero saber é se você promete...

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