quarta-feira, 31 de maio de 2017

Crônica cotidiana de Celeste Martinez

Publicado no Facebook dia 28 de maio de 2017


Atravessava a faixa de pedestre da rua Ruy Barbosa, cruzamento com as ruas Quintino Bocaiúva e Praça da República, em Valença Bahia, quando encontrei, bem alí no passeio, um senhor, conhecido de muitos anos. Expressei imediato na face um belo e largo sorriso. Disse, encurvando meu corpo em reverência:
- Olá, Mestre!
Este, sem pestanejar, respondeu:
- Mestre, é aquele!
Sincronizou a palavra com o gesto em retirar da cabeça o boné e levantar as mãos para o céu, como em súplica. Referia-se ao Todo Poderoso.
Após, desviou o corpo para desobistruir a via pública, agarrou na minha mão com força e iniciou o diálogo que eu já previa o tema.
- Venha cá, professora, quem é mais Mestre aqui de nós dois?
- O senhor. Respondi.
- Oia, veja, bem, estou falando, que a senhora que estudou, dá converva a esse pobre homem. A senhora que se veste com simplicidade, não é arrogante e sempre conservou a sua essência.
Ele falava como se eu tivesse o diploma de doutora, quando, apenas conseguir obter a graduação. Descrevia-me tão bem que assustei-me com os adjetivos generosos atribuidos a mim. A nossa amizade, vem dos tempos em que estudei na Escola Média de Agropecuária Regional da Ceplac – EMARC- Valença. Ele era morador daquelas redondezas e presenciou muitas vezes minhas idas e vindas, a pé, calçada com pesadas botas. Desde a primeira vez, que dirigiu-me a palavra com um cordial bom dia e eu respondi com respeito, mantivemos uma camaradagem que depois foi enlarguecendo para a esposa, filhas e filhos. Uma delas, até quatro meses atrás, escutava o Alacazum.
Ele fez um breve resumo desta ocasião. Relatou com tanta nítidez aquele momento que eu pensei que estava vivendo novamente. Para mim, no entanto, era apenas o homem, que saía pelas ruas de Valença, empurrando um carrinho de mão, cheio de aipim para vender de porta em porta.
Em todas as conversas que tivemos, sempre faz questão de repetir que criou, todos os filhos, com esta atividade.
- Graças, a Deus! Tira o boné quando fala.
Vendo-o alí, vestido com calças compridas, blusa de manga larga, sandálias de tiras, desgastadas, é o mesmo homem dos meus tempos de escola na Emarc. O que muda são as marcas do tempo escritas no rosto em forma de mapas. Só passa a conhecer, quem se atreve, a escutá-lo. Fez uma análise momentânea entre aquele tempo vivido na Emarc com os de agora.
- Aquilo, sim era aprendizagem! Hoje, em dia, não se aprende nada, por que essa juventude, não respeita mais ninguém. Nem pai, nem mãe. Muito menos professora.
Eu, o escutava atentamente. Fixava o olhar em seu rosto. Conservava a mesma vitalidade na expressão e no sorriso. Apesar de desdentado, semi-careca, aquele homem, baixinho, que viveu toda sua vida nesta cidade, percorrendo o mesmo caminho, visitando as mesmas casas, conhecendo seus clientes compradores desta raíz, que como ele mesmo diz” sustentou toda a sua família, honestamente “; mantinha revigorante conversa encorajadoura. Era feliz. Sorria enquanto falava. Reconhecia no outro sua capacidade extratemporal. Eu o admirava. A energia de um ancião que com seus mais de oitenta anos, continua a trabalhar. Ah! Se eu não tivesse compromissos, ficaria alí horas a fio, escutando-o. A noite, empurrava a tarde para o outro lado do mundo. Teria que despedir-me. Ele entendeu.
- Vá, professor, vá .
Pegou seu carrinho de mão, todo em madeira, aparentava ser pesado, com algumas raízes de aipim dentro e partiu.
Como aquele homem, não se considerava Mestre, se naquele instante, inspirava-me uma crônica?

Valença, Bahia, 26 de maio de 2017

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