quinta-feira, 23 de abril de 2009

Tia Nastácia

Lido na 124° edição do programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 19 de abril de 2009, transmissão pela Rádio Clube de Valença 650 Khz AM.

Enquanto conversavam, Tia Nastácia, sempre à distância, rezava, e volta e meia fazia um pelo-sinal.

-Como deram com ela aqui? – perguntou São Jorge, pondo os olhos na pobre negra.

Foi Emília quem respondeu:
-Ah, santo, tia Nastácia é a rainha das bobas. Veio conosco enganada. Cheirou o pirlimpimpim pensando que era rapé...

São Jorge quis saber o que era rapé e pirlimpimpim, e muito se admirou das prodigiosas virtudes do pó mágico. Depois fez sinal á tia Nastácia para que se aproximasse.

-Venha boba! – animou Emília – Ele não espeta você com a lança. É um santo.

Tia Nastácia fez três pelo - sinal todos errados, e foi se aproximando, tremula e ressabida. Estava ainda completamente tonta de tantas coisas maravilhosas que vinham acontecendo. O dragão, o sumiço que levaram o Visconde e o burro, aquele prodigioso santo vestido de armadura de ferro, com capacete na cabeça, escudo no braço e “espeto” em punho – e lá no céu aquela enorme “lua” quatro vezes do tamanho do Sol – tudo isso era mais que bastante para transformar a sua cabeça pelo resto da vida.

Mesmo assim veio toda a tremer, com os beiços pálidos como de defunto.

-Não tenha medo – disse-lhe Narizinho – São Jorge não come gente. É um grande amigo nosso e muito boa pessoa.

Tia Nastácia afinal chegou-se – mas embaraçadíssima. Tinha as mãos cruzadas no peito e os olhos baixos, sem coragem de erguê-los para o santo. Estar diante dum santo daqueles, tão majestoso na sua armadura de ferro, era coisa que a punha fora de si.

- Não tenha medo de mim – disse São Jorge sorrindo – Diga-me está gostando deste passeio à Lua?

O tom bondoso da pergunta fez que a pobre negra se animasse a falar.

-São Jorge me perdoe- disse ela com a voz atrapalhada. – Sou uma pessoa negra que nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar na cozinha para Dona Benta e estes seus netos, que são as crianças mais reinadeiras do mundo. Eles me enganaram com uma história de rapé do Coronel Teodorico, o compadre lá de Sinhá Benta, e me fizeram cheirar um pó que mais parecer arte do canhoto. Agora a pobre de mim está aqui nesta Lua tão perigosa, sem saber o que fazer nem o que pensar. Minha cabeça está que nem roda de moinho, virando, virando. Por isso rogo a São Jorge que me perdoe se minhas humildes respostas não forem da competência e da fisolustria dum santo da corte celeste de tanta prepotência...

Todos riram-se. A pobre preta achava que diante dos poderosos era de bom tom “falar difícil”, e sempre que queria falar difícil vinha com aquelas três palavras, “competência”, “prepotência” e “fisolustria”. Ela ignorava o significado dessas coisas, mas considerava-as uns enfeites obrigatórios na “linguagem difícil”, como a cartola e as luvas de pelica que os homens importantes usam em certas solenidades.



Fragmento do livro: “Viagem ao Céu” de Monteiro Lobato


Nenhum comentário: