segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Catar Feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidare
as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

"Catar Feijão", são 48 poemas, escritos por João Cabral de Melo Neto, fizemos a leitura das duas primeiras estrofes no programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER em sua 99° edição.

Comentário:

Tem como objeto a construção do poema, toma como referência um ato do cotidiano em que também o escolher, o combinar são necessários. O jogar as palavras é a primeira etapa criadora: a inspiração. Essa leva o artista a colocar no papel suas iniciais impressões. Porém, o verdadeiro artista não fica aí: ele, assim como o catador de feijões, seleciona os melhores grãos, a fim de construir uma poesia que fale, não pelo excesso, mas pela contenção, desfazendo- se de tudo o que for leve e oco, palha e eco. O que já foi dito não interessa repetição. Sua paixão e consciência buscam a originalidade da forma e do conteúdo.

O poeta seleciona, vê e revela, mesmo disfarçando, o que seus olhos percebem. Numa postura inovadora: a pedra dando à frase seu grão mais vivo; o prazer mais vivo.O verbo catar assume o sentido de escolher. Porque catar feijão é, como catar palavras, recolher, retirar o que não é feijão ou não é feijão bom ,o que não é palavra adequada ou não é palavra boa. Nota-se que o rigor de escolha é mesmo exemplar. Conquanto haja o propósito de conceituar o ato de escrever, com a importância fundamental que lhe dá de ser dada, o poeta usa o verbo limitar para estabelecer proximidades (e não igualdade) entre comparante e comparado: "Catar feijão se limita com escrever", e não é o mesmo que catar feijão é como escrever.

O poema Catar Feijão faz parte do livro A Educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, cuja primeira edição foi publicada em 1965.No poema João Cabral de Melo Neto revela sua concepção do ato criador.

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