quinta-feira, 22 de maio de 2008

Cercas elétricas

Sabe uma dessas manhãs em que ao acordar, você se depara com algo inusitável em termos de deformação da paisagem? Não foi o dendezeiro do quintal ao lado que arrancaram depois da nossa ousadia em defende-lo. Não foi também o restante dos manguezais que cercam a nossa casa. Pois é, foi em uma dessas manhãs aterrorizantes ao olhar, que meu ser ficou congestionado de impressões inusitáveis. Não inusitável em termos de euforia que dignifica a alma e sim o choque diante da angustia do cotidiano em que as surpresas são sempre na maioria das vezes malignas. Abri a porta de casa e olho em frente. A casa do vizinho toda cercada por essa tal de cerca elétrica. Não ficou só nisso, dobro a esquina e outra e mais outra. De repente toda a vizinhança estava fantasiada com este apetrecho recente, criado como forma de afastar o perigo do intruso em sua residência. Mais um recurso dos engendrosos do comércio. E fiquei com aquela sensação de que estava fora do rol dos que se acautelam ante um perigo eminente. Como ser cauteloso se a vida é um vendaval constante? Sou artista. Não aquele do seriado norte-americano que nunca morre e que você sabe desde o começo do filme que ele é o “mocinho”. Não, não sou este tipo de artista comercial. Sou dos que carregam pedras, dos que sangram as mãos, dos que machucam os pés, dos que transpiram e gosta das gotículas que caem salgando a boca. Eu aprecio essa vida de ser artista. Sim, voltemos as cercas elétricas. Naquele instante me senti fora do contexto. E pensei: algo está por vir. Não é possível que toda essa gente de repente se prepare com cercas elétricas por nada. E então me posicionei a pensar qual o perigo eminente. Uma invasão por seres extra-terrestres? Uma invasão do exército além do atlântico? Uma invasão por supostos inimigos de todos os vizinhos do meu bairro? Por que essas questões devem ser levadas em conta já que no cotidiano já está impresso a violência urbana, a marginalidade, os assaltos, as violações, arrombamentos, a fome, a diferença de classe, as injustiças, o despotismo, a falta de oportunidade e outros tantos efeitos e ações dos que regem o lugar em que vivemos. Isto eu já sei e todos vocês também. Obviamente voltei a refletir que não poderia ser uma invasão extra-terrestre, não creio que estes seres estejam tão atrasados e tão deseducados para invadir o planeta terra. Tão pouco além do atlântico ou entre os nossos vizinhos mais próximos. Agora se todos esses distúrbios da vida social mal gerenciado, nos afetam diariamente e não temos as vantagens ou o direito que prescreve a lei, que é a segurança, não creio que cercas elétricas vão inibir o “inimigo”, que é um ser humano, que não é privilegiado, que não é avantajado por falsos títulos, que não comanda nenhuma instituição, que não desfruta de uma residência no mínimo estruturada com saneamento básico, que não desfruta do lazer, etcetera e etcetera e tal. Não creio que estas ditas cercas elétricas vão inibir o mal de não ser acometido pelo sobressalto. Sabe por quê? Por que simplesmente estamos vivos. Basta está vivo para ser suceptivel aos sobressaltos. Esta manhã, meus olhos ficaram embotados de cercas elétricas e senti um calafrio percorrendo todo o meu corpo, talvez o choque por tantas cercas elétricas, talvez por pensar que o pânico chegou ao meu bairro e se instalou na casa de todos os meus vizinhos que têm cercas elétricas e que eu acordei tarde e não vi a mensagem escrita nos jornais que dizia que devemos nos preparar para os próximos dias de inverno.
Celeste Martinez- escritora

Um comentário:

José Ricardo da Hora Vidal disse...

Cara Professora Celeste, o que mais causa espanto neste seu texto que isso ocorre em aí Valença, uma idade do litoral baiano, relativamente distante do caos Rio-Sâo Paulo. Sei que segurança pública na cidade está a desejar (e já sofri isso quando vi minha casa da Graça ser arrombada mais de três vezes) e que cidade inchou (não cresceu porque não houve desenvolvimento, apenas inchou de tamanho). Contudo, estas cercas elétricas em alguns bairros de Valença está mais paranóia do que uma ameaça real. O fato das pessoas verem filmes como "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite" ou ficarem anestesiados a hiper-exposição do caso Isabella Nardoni criou esta falsa impressão de guerra civil, que todos são inimigos, de que vivemos a idade da barbárie urbana. E esquecem que moramos distantes da favelas cariocas e paulistanas. E se olhar bem, o mundo não é assim tão violento como parece. Várias vezes me disseram que a noite de Valença é perigosa. Contudo eu cansei de sair da orla do Rio Una, em plena madrugada e voltar caminhando para casa na Graça sem ter acontecido algo. E olhe que costume ir amiúde a Valença, mais vezes do que as pessoas pensam. Por isso que eu me concordo contigo, profesora Celeste, em número, gênero e grau. Só espero que esta paranóia não levem as pessoas que colocaram as cercas eletrificadas aí em Valença não venham e a se armarem com AK-47, Magnum 44, granadas, morteiros, lançadores de NAPALM e outros "brinquedinhos de guerra e segurança"...