João Ubaldo Ribeiro
Todo mundo sabe que a terra aqui em Itaparica é fertilíssima, uma coisa que só vendo para acreditar. Bem verdade que costumava ser ainda mais fértil, mas isso era no tempo em que não havia televisão, de maneira que o pessoal contava histórias sobre proezas agrícolas e a coisa aumentava um pouco. Quase não temos mais bons mentirosos em Itaparica, a não ser do tipo desagradável existente em toda parte, o mentiroso político, o fariseu, essas personagens de rotina mesmo. Os outros, os bons, foram liquidados pela concorrência da tevê: hoje o pessoal fica em casa e, mentira por mentira, as dos comerciais do governo já satisfazem a quem quer dar umas risadinhas.
Lembro bem dos coentros de Lamartine. Isso foi no tempo em que Lamartine era rapazinho - e já estava velho quando o conheci, há mais de trinta e cinco anos, por aí vocês vêem quanto tempo que não faz. Os coentros de Lamartine, ele exagerou na adubagem, foi isso. Naquele tempo, não se podia exagerar na adubagem, porque a terra ainda estava muito impetuosa, muito moça, quase virgem, negócio mesmo de o sujeito se arriscar a ver raiz crescer no dedo, se enfiasse o dedo nela um tempinho. Mas ele exagerou no Salitre do Chile Especial e foi o que se viu: cada pé de coentro que dava para um homem se esconder atrás. Coisa que, aliás, ele chegou a fazer, numa certa oportunidade. Estava fugindo de dona Naninha, então noiva dele, por causa de uma transgressão da mocidade qualquer, e aí se escondeu dela atrás do pé de coentro. E ela não viu nada, sendo bem possível que tivesse pensado que errara de caminho e, em vez de à horta do noivo, tivesse chegado a um bananal.
Esse Salitre do Chile Especial, por sinal, nunca mais ele usou, porque as plantas ítaparicanas tratadas com ele eram um transtorno. Quem quer que já tenha tentado vender um molho de coentro com as folhas do tamanho de palhas de coqueiro compreenderá bem o problema de Lamartine. Se a natureza fez as folhas de coentro daquele tamaninho, é porque quis que elas fossem assim. Que fez então Lamartine? Pegou o resto do saco do salitre e jogou nos fundos de um quarto do quintal, cômodo abandonado que ele só usava para depositar umas tralhas velhas mesmo.
Mal lembrava ele que, neste nosso clima, as plantas muitas vezes crescem sem ajuda de ninguém. Há casos e mais casos de gente que enricou vendendo melancia do quintal sem nunca ter plantado melancia. Assim também são a abóbora, a flor que se chama boa-noite, a mamona, os capins e assim por diante. Pois muito bem, um belo dia Lamartine vai passando pelo quintal e nota que as paredes daquele quarto estão como que rachando, mostrando fendas para além do reboco. Que diabo seria aquilo?
A porta era dessas que abrem para dentro. Ele foi buscar a chave, girou-a, empurrou a porta e nada. Forçou com o ombro, deu pontapé e nada. Mandou chamar um caboclo forte que trabalhava com ele, o caboclo veio, meteu também o ombro na porta, a porta nada. Assim já era demais. Lamartine se aborreceu, mandou buscar um machado, tacou o machado no meio da porta. Uma machadada,duas machadadas, três machadadas e — zás! - sai uma lasca de madeira da porta, acompanhada de — adivinhem o quê? — Exatamente. De uma talhada de abóbora. A desgraçada da aboboreira que estava nascendo, toda encorucujadinha no canto do quarto, se cevou no adubo e aí deu uma abóbora que cresceu, cresceu, cresceu, até chegar àquele despropósito, quase destruindo o quarto todo e dando um prejuízo enorme.
Hoje em dia, não estamos mais como no tempo de Lamartine, mas a terra ainda é bastante fértil. E, felizmente, os praticantes da agricultura e do criatório, embora em pequeníssimo número, se comparado à pujança de outrora, de vez em quando nos surpreendem com novos feitos. Meu primo Zé de Neco mesmo, que não fuma, não bebe e só diz palavrão em último caso, pai de família apontado como exemplo em toda a cidade, merecia uma reportagem. Se o Nordeste não fosse discriminado, meu primo Zé de Neco teria uma bela reportagem. Uma não, duas pelo menos, pelo menos uns dois fantásticos da televisão. Como disse Armando de Lalá, num repentismo desses que vêm à cabeça dos poetas sem mais nem mais:
Fica os fantásticos filmando americano
E ninguém mais não admira o itaparicano!"
Zé cria galo de briga e não poupa sacrifícios para o aprimoramento genético de seu plantel. Para que o galo de briga tenha os baixos instintos indispensáveis ao exercício de sua profissão, é necessário que venha de linhagens inaceitáveis em qualquer família decente. Como, por exemplo, ser raceado com urubu. Pois Zé vai atrás do urubu, pega o urubu e força o casamento com as galinhas de briga dele. Como também força casamentos com mutuns, gaviões, o que pintar - o que interessa é um galo bom. Objetarão os que acham isto impossível, pelas leis da biologia. Respondo que tentem objetar a Zé pessoalmente, para ver se, apesar de já estar chegando aos 60, ele ainda não é bom de capoeira. Ele não aprecia ser chamado de mentiroso.
Tanto assim que lhes passo como verdade verdadeira o conselho que ele deu a todo proprietário de jardim ou areazinha onde possa plantar. O conselho é o seguinte: arranje uma manaíba, enfie lá e esqueça. Manaíba é o nome dado a uma raiz de mandioca que se usa para reprodução, uma espécie de muda, ou semente.
— Mas pra que é que eu quero um pé de mandioca no quintal, Zé?
— O que é que eu falei? Eu disse "plante uma manaíba e esqueça".
É pra esquecer.
— Mas, se é pra esquecer, pior ainda.
— É porque você não sabe do caso da Viúva Monção.
— A Viúva Monção?
— Você não conheceu, não foi de seu tempo aqui. Mas a Viúva Monção plantou uma manaíba de aipim na horta dela, esqueceu e, quando foi limpar o terreno, tirou uma macaxera de sessenta e quatro quilos!
— Como é que foi, Zé?
— Um aipim de sessenta e quatro quilos! Sessenta e quatro quilos! Agora, imagine isso aí, jardim por jardim, quintal por quintal. Não havia mais o problema da fome.
— Não sei não, Zé. Se tirassem a patente dessa manaíba da Viúva Monção, iam fundar a Mandiocabrás, criar o imposto sobre produtos da manaíba e exportar a manaíba toda.
— Isso é verdade. E, porque gringo não come aipim, iam acabar não deixando ninguém plantar aipim. Não, esqueça. Nunca houve esse aipim de sessenta e quatro quilos, da Viúva Monção.
— Mas você falou...
— Isso é porque a pessoa esquece que existe governo e aí vai fantasiando umas bobagens. Mas depois lembra que existe governo e aí lembra que uma mandioca dessas havia de ser ilegal, visto a falta de comida até hoje ter sido o programa de governo do governo.
— Zé — disse eu —, você devia ser ministro.
— Deus me livre — disse ele. — Eu sou contra a fome.
Texto extraído do livro "Arte e Ciência de Roubar Galinhas", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 63.
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