quinta-feira, 6 de novembro de 2008

‘Ara wara kosi me fara’ (1)

Este artigo foi repudiado para publicação, pelo jornal Valença Agora- periodico da cidade de Valença-Bahia- no dia 05 de novembro de 2008

‘Ara wara kosi me fara’ (1)

Para o Sr. Ramiro Campelo

Naquela calorosa manhã do dia 26, décimo mês do calendário cristão, ano de dois mil e oito, não eram apenas pessoas reunidas no adro da Igreja do Amparo comemorando a lavagem de suas escadarias; eram energias que circulavam em torno das rodas de samba, dos capoeiristas, das mães e pais de santo, dos devotos católicos, dos turistas, dos vendedores ambulantes, dos profissionais de segurança, de toda gente, reunidos num mesmo momento dentro de um único sentimento religioso.

Era uma bela manhã de primavera digno das comemorações, digno dos cultos, digno dos cânticos: ‘Ara wara kosi me fara’ (Todos unidos no mesmo corpo, nada há no mundo que possa contra mim). Foi aí que me abordou o pensamento fazendo reflexão a uma entrevista do senhor Ramiro Campelo (prefeito eleito com 43,19% dos votos válidos) quando este ressaltou que dentre as inúmeras ações de seu governo, constaria a valorização a diversidade cultural e religiosa afro-descendente e também sua intenção em transformar o Teatro Municipal de Valença em Palácio da Raça Negra. Nada mais justo do que valorizar estas tradições, que por longos anos foram marginalizadas. Se um dirigente político vislumbra tais ações como prioridades, nada mais coerente do que aplaudir tal ação. Ao demonstrar este sentimento de valorização da diversidade cultural da região, o Sr. Ramiro Campelo, demonstra conhecimento das atuais ações do governo federal e estadual, quando da II Conferência Estadual de Cultura (2), ocorrido em 2007, em Feira de Santana, que diz:

· Criar e garantir centro de referência afro-descendente que incentive a valorização, a divulgação e o apoio pedagógico, financeiro e de infra-estrutura à cultura afro-descendente;
· Promover, em nível estadual, a igualdade e respeito à diversidade cultural e religiosa Afro-descendente;
· Identificar, valorizar e dar suporte aos grupos artísticos e artistas individuais afro-descendentes, tais como hip hop, rap, reggae, samba de roda e outros do gênero negro, como forma de expressão artística e patrimônio imaterial.

Por que para os ‘tontos’ que disparam vocábulos irreconhecíveis e ainda censuram que a valorização da raça negra não deve ser prioridade de governo, para estes que aparecem munidos com seus termômetros econômicos, medindo a pobreza da região, - pobreza esta, legado das diferenças sociais, onde a raça negra e o ameríndio foram os mais afetados e continuam sendo - para estes, não existirá amanhã. Nem mesmo o hoje conta como verdade. Estes ficarão remoendo células podres de um passado nojento e nunca discutirão alternativas.

Naquela divina manhã, no topo da maior elevação existente na cidade de Valença – a Igreja de Nossa Senhora do Amparo, padroeira da cidade e onde uma expressiva multidão estava presente – percebia-se as três dimensões que circundam o conceito de cultura: a simbólica, social e econômica. Ali estavam identificados através da fala, da indumentária, dos ritos, costumes, crenças... A sintonia que nos circunscreve como cidadãos possuidores de pequenas verdades (singularidades) e onde se entrelaça o social, dando-nos a representatividade em um território, município, estado, nação.

E a dimensão econômica?

Novamente o pensamento fez passagem na abordagem feita pelo Sr. Ramiro Campelo quando da estimulação aos pequenos empreendedores e ali mesmo no adro da igreja do Amparo, podíamos perceber o pequeno comércio que se desenvolve em torno das festas de largo: a baiana do acarajé, os vendedores ambulantes, o parque de diversões, os fornecedores, os transportes urbanos e marítimos, os donos de imóveis, restaurantes, bares, as costureiras, os ornamentadores, etc.

Segundo a Superintendência de Cultura do Estado da Bahia (3): ‘A diversidade e a criatividade de nossa produção cultural são incontestáveis e a visibilidade crescente de sua importância econômica é demonstrada pelos números que registram a cultura respondendo por 5% dos empregos formais do Brasil (IPEA) e por 5% do PIB Nacional (Mercosul Cultural). Esta abordagem abre caminhos que contribuem para consolidar um ambiente fomentador de desenvolvimento das atividades culturais e organização das cadeias produtivas, dos arranjos produtivos culturais locais e de sistemas articulados com a economia do entretenimento e do lazer.

Ao contrário do que alguns pensam que um distrito industrial seria a solução. Ainda mais, para os que desconhecem o verdadeiro conceito da palavra ‘indústria’. A indústria não está somente na cidade como no passado. A indústria está no campo, na agricultura familiar, no trabalho das doceiras, costureiras, no mangue, artesãos, turismo. Principalmente a indústria que não polui, que preserva. Segundo Luis G. Sousa (4), a indústria é todo esse conglomerado de empresas pequenas ou quase pequenas, cujos participantes não têm uma corrida frenética em busca do lucro extra-normal, ou econômico, para a formação de um poder de mercado que sobressaia, frente a todos que comungam das mesmas oportunidades de atuação no mercado livre entre consumidores e produtores. Faz-se necessário sim, estimular os potenciais produtivos num movimento de empreendedorismo e protagonismo para que ocorra a sustentabilidade das ações de desenvolvimento que estão sendo postas em prática no território de identidade do Baixo Sul.

Entre o ver e o enxergar. Quantos realmente enxergam? Mais ainda: quantos vislumbram?

Do adro da Igreja do Amparo, cercado por balaustrada, perfazendo um ângulo de 180° pouso o olhar na extensiva geografia: o rio Una, lânguido, secular, resistente; o verdor da paisagem e os mosaicos coloridos das habitações, distribuídos aqui, ali, além, acolá.

Volvendo então o corpo em sentido contrário, confronto-me com a Igreja do século XVIII, com sua fachada mais larga que alta, recém pintada em branco e azul, com suas cinco portas superpostas por igual número de janelas, divididas em três partes por pilastras coríntias, torre terminada por cúpulas em meia-laranja e revestido de azulejos azuis e brancos. Mais não é só isto que empolga meu olhar na terapia da contemplação, o que me envolve neste ato é o calor humano, os bons fluidos, os hinos de louvor, os pedidos de prosperidade e os sons dos atabaques envolvidos pelas vozes humanas emanando a mais bela prece aos santos e orixás. Palavras cantadas regadas de devoção e amor.

Este novo momento que se confirma no panorama político da região está respaldado pela confiança do povo em um governo próspero. O povo assim decidiu. Por isso não queremos ‘aves de agouro’ rondando as nossas cabeças. Queremos sim os hinos em louvor a Nossa Senhora do Amparo, as cantigas nos terreiros que diz: ‘Ara wara kosi me fara’ (Todos unidos no mesmo corpo, nada há no mundo que possa contra mim).

Necessitamos criar novas propostas. Não acatar a crise dos ianques como apuro para a nossa economia e sim estímulo para novas investidas. Acima de tudo refletir que somos habitantes de um mesmo território de identidade e que não podemos nos afastar de nossas responsabilidades como cidadãos, comprometidos com o desenvolvimento de nossa cidade.


Celeste Martinez – escritora

Referências:

(1) Cantiga nos terreiros (Todos unidos no mesmo corpo, nada há no mundo que possa contra mim). SOUSA JR., Vilson Caetano (Org.) Nossas Raízes Africanas. São Paulo: 2004

(2) Caderno de Cultura 2, jan/fev 08. Resultados da II Conferência Estadual de Cultura-Governo da Bahia/Ministério da Cultura

(3) Apostila: A Cultura como Dimensão Estruturante das Políticas Públicas. Superintendência de Cultura/ Diretoria de Projetos para o desenvolvimento da Cultura

(4) Site: www.eumed.net/libros/2005

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