terça-feira, 25 de novembro de 2008

A TIRANA

Na 103° edição do ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER fizemos a leitura do seguinte texto:

Quem a vê, tão velhinha, tão honesta de aparência, não sabe o que ali se esconde. Casou, teve filhos e lhe vieram netos, e sobre a descendência ela se repastou no gozo de mandar. Só queria dar ordens. Se um filho gostava de Maria, seria com Joana que haveria de casar, mesmo porque um filho não tinha o direito de gostar senão de quem ela gostasse. Se outro queria estudar Medicina, deveria estudar Direito. Se a filha não queria engordar – ela a trataria especialmente a mingau de fubá e macarronada. Afinal, ela dera vida e criara todos aqueles patifes, e agora chegara o seu momento. Sua casa era um quartel; ela gozava a delícia de implantar a disciplina mais feroz.
Durante anos conseguiu ser mais elogiada, adulada, festejada do que um ministro em viagem pelo interior. Depois, com os novos elementos, com os estranhos entrando na família, começou a derrocada do império. Primeiro foi a nora que não se quis desfazer de uma mobília de estimação e debandou de casa. O marido da fugitiva ainda se demorou uns dias em companhia da mãe, sem te coragem de quebrar aquela disciplina que já lhe entrara pelos confins da consciência. Mas certa manhã, à hora do café, ele não apareceu. Sua cama não fora desfeita, Em cima da mesa de cabeceira estava o bilhete: “Mamãe – A senhora não quer minha mulher- eu também vou embora”. Era a revolução. Pouco a pouco foram imitando o rebelde. O filho, que fora obrigado a estudar Direito, largou a profissão e se permitiu ter negócios sem nenhum visto materno. A filha, que era engordada como peru de Natal, arranjou emprego e passou a almoçar tranquilamente as suas saladas.
Depois, como conseqüência da insubordinação, houve a debandada. Os filhos e os netos se arranjaram como puderam, fora de suas vistas. A senhora ficou sozinha em seu palacete. Agora, o dinheiro sobrava, o espaço sobrava. Só lhe faltava – e como doía! – o povo oprimido, que só de povo oprimido vivem os governantes de vocação, e ela tinha o governo na massa do sangue. No seu isolamento, já velha, a senhora arquitetava planos. Por fim, decidiu-se. Alugaria os quartos vazios. E por um aluguel tão barato, que os inquilinos lhe seriam gratos até pelas zangas. Pôs anúncios, escolheu com delícia requintada as novas vítimas, e em breve tinha a casa povoada.
- Muito melhor ter inquilinos do que filho para se mandar- pensava, uma musiquinha alegre e marcial entoando por dentro. Agora, aos oitenta e três anos, ela ainda tinha bons ouvidos. Sabia muito bem que os inquilinos falavam mal de seu gênio. Falavam, por trás, espumavam de raiva, mas continuavam fazendo corte fingida. Isso ela não podia permitir, esses desabafos. Arranjou empregado – espiões que lhe contavam as conversas: - “Quem quiser morar em minha casa me deve respeito também nas ausências- esbravejava. Mas, no meio daquele rebanho de pessoas que ela dominava, havia uma a quem seu poder não alcançava. Era um saudável americano, sempre lépido, sempre jovial, que recebia visitas de patrícios, e com eles dava gargalhas estrondosas. Aquelas risadas eram um punhal em seu coração.
-Será que ele está rindo de mim? Mas por que esse diabo anda tão contente? Que alegria sem quê nem pra quê é essa?
A verdade é que o americano fugia do seu domínio, pois em sua língua se refugiava se banhava, se confortava e se retemperava. Com ele nem espião dava certo. E a velhinha, aos oitenta e três anos põe os óculos, procura a seção de anúncios no jornal e acerta a primeira aula com um professor de inglês: - Olhe aqui, mister. O senhor tem que me arranjar aulas diárias. Preciso aprender inglês, bem depressa, para saber, afinal, se o danado do americano ainda falando de mim!
Aos oitenta e três anos, a velhinha se propõe a estudar, no entusiasmo de conquistar a última praça d´armas.Foi o próprio professor quem desfiou esse reconto da senhora tirana. Diz ele que a dama já conseguiu traduzir umas coisinhas que o americano murmura, de dentes cerrados.

Dinah Silveira de Queiroz – Livro: SELETA

Nenhum comentário: