segunda-feira, 8 de setembro de 2008

E o vaidoso fabricante de versos perguntou, em tom superior:
- E esses óculos escuros à noite, para que são?
E eu lhe respondi em silêncio:
- Porque sua maldade é eterna. E porque os poetas vêem melhor na escuridão.

E eu coloquei meus óculos escuros
Contra a mediocridade dos neons
Contra a agressão das almas monstruosas
E a crueldade oculta nas manhãs
- na penumbra amnésica anteparo
O cotidiano fogo dos dragões.
E eu ajustei meus óculos escuros
Mas vi gente comendo carne humana
Crianças assaltando à mão armada
Cheirando cola ou sendo trucidadas
Enquanto os vaidosos declamavam
A sua dor tão dicionarizada.
E eu sai à rua de óculos escuros
Porque me cega a cena da injustiça
Porque a lei só legítima a força
Descobriu a platéia o fundo falso
Do palco onde encerrou-se o último ato
E se esqueceram de fechar o pano.
E eu uso sempre os óculos escuros
Porque o mundo é uma faca nas pupilas
Trapézio inteiro de aramae farpado
Sobre a rede de areia movediça
A pele triturada e sem aplausos
Prossigo encantadora de serpentes
E eu saio à noite de óculos escuros
Porque meu corpo acende nessa hora
Meus óculos são véu de pirilampos
Me resguardam de dentro para fora
Escondem o emu sol subterrâneo
- são a nave em que chego até os homens.
Lucila Nogueira

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