Conheci a obra de Franz Kafka em 1917 e agora confesso que fui indigno da obra de Franz Kafka. Eu o li em uma revista expressionista, profissionalmente moderna, que havia se consagrado a inventar a falta de pontuação; a falta de rimas, a falta de maiúsculas e o abuso de metáforas simuladas e aparatosas palavras compostas próprias dos jovens desse tempo e talvez dos jovens de todos os tempos. Entre esse estalido impresso, figurava um apólogo, contraposto à corrente, que levava a assistência de Franz Kafka e que considerei inexplicavelmente insípido. Recordo que li uma fábula sua, escrita de maneira simples, e me apareceu incompreensível sua publicação. Passei frente à revelação e não a percebi. Também devo confessar que aderia plenamente a este estilo barroco e que buscava imitá-lo. Mais tarde seus livros chegaram às minhas mãos é então me dei conta da minha insensibilidade e do meu erro imperdoável.
A grandeza de Kafka é evidente e seu gênio indiscutível. É o escritor menos controvertido deste século e talvez o primeiro, ainda que em nada, ou quase nada, se pareça a este século. A leitura de outros escritores nos leva a pensar na época em que escreveram. Se tomamos o caso de Shakespeare, temos que pensar continuamente que escreveu para o palco e não para a leitura; temos que pensar na política, na decadência da Espanha, da Armada Invencível. Se tomamos o caso de Dante, não podemos esquecer sua teologia nem seu amor por Virgílio. Se tomamos o caso de Walt Whitman, não podemos prescindir do sonho da democracia que professava. Tampouco podemos ler Hugo sem nos afastarmos da história da França. Kafka é uma exceção a essa regra tão comum na história da literatura. É um escritor a quem podemos ler atemporalmente. Kafka nasceu em Praga, é de origem judia, é boêmio, mas não se sente tchecoslovaco. Vive e sofre as conseqüências da Primeira Guerra Mundial, mas nada disso se reflete em sua obra. Seu trabalho poderia ser definido como uma parábola ou uma série de parábolas, cujo tema central é a relação moral do indivíduo com a divindade e com o universo. Kafka via sua obra como um ato de fé e não buscava através dela desalentar os homens.
Surgiu e morreu como um clássico no que se refere ao formal. Quanto ao conteúdo, recordo que meu amigo, o poeta Carlos Mastronardi, me disse uma vez que no final das contas Kafka não havia feito outra coisa a não ser renovar o paradoxo de Zenão de Eléia: uma flecha não pode chegar a sua meta porque antes tem que passar por um ponto intermediário, antes por outro ponto intermediário, e assim sucessivamente temos um número infinito de pontos onde a flecha em cada momento está imóvel no ar, e somando imobilidades não se chega nunca ao movimento. Curiosamente, descobri depois uma versão chinesa desse mesmo paradoxo. Está no livro de Chuang Tzu e é a história dos reis de Ian. Supõe-se que cada rei, ao morrer, rompe o cetro e entrega a metade restante a seu sucessor; o sucessor faz o mesmo e por isso a dinastia é infinita. No caso de Kafka, podemos pensar que um de seus temas é a infinita postergação. Essa postergação está sentida de um modo patético, e nisso radica a suprema novidade de Kafka, tomar esse tema que antes havia sido um tema das matemáticas e levá-lo a uma expressão da vida.
Um remoto imperador, infinitamente remoto no tempo e no espaço, faz com que infinitas gerações levantem um muro infinito que dê a volta em seu império infinito para deter o curso de exércitos infinitamente distantes. Como Virgílio, que a ponto de morrer encarregou seus amigos de reduzir a cinzas o manuscrito inconcluso da Eneida, Franz Kafka encomendou a Max Brod a destruição dos romances e narrativas que asseguravam sua fama. A afinidade destes ilustres episódios é, se não me engano, ilusória. O delicado Virgílio não podia ignorar que contava com a piedosa desobediência de seus amigos: o obsessivo Kafka, com a de Brod. No mais, o autor que realmente deseja a desaparição de sua obra não encomenda essa tarefa a outro. Sem dúvida Virgílio e Kafka não desejavam profundamente a destruição de seus escritos: só queriam desligar-se da responsabilidade que uma obra sempre nos impõe. Kafka, como Chesterton, teria preferido a redação de páginas felizes, mas sua fidelidade não condescendeu em escrevê-las.
1883-1924. Estas duas datas delimitam a vida de Franz Kafka. Ninguém pode ignorar que ele foi marcado por importantes acontecimentos históricos: a Primeira Guerra mundial, a invasão da Bélgica, as derrotas e as vitórias, o bloqueio dos impérios centrais pela frota britânica, os anos de fome, a revolução russa, que foi portadora de uma generosa esperança e que é hoje o imperialismo, o degelo, o tratado de Brest-Litoskv e o tratado de Versailles que engendrou a Segunda Guerra Mundial.
Ele foi igualmente marcado por uma série de fatos íntimos observados na biografia que Max Brod escreveu: os desentendimentos com o pai, a solidão, os estudos de Direito, as horas no escritório, a profusão de manuscritos, a tuberculose. E também as grandes aventuras barrocas da literatura: o expressionismo alemão, as proezas verbais de Johannes Becher, de William Yeats e de James Joyce.
O destino de Kafka consiste em transformar os acontecimentos e as agonias em fábulas. Narra pesadelos sórdidos em um estilo límpido. E não deixa de ser notável que ele tenha sido leitor das Escrituras e admirador fervoroso de Flaubert, de Goethe e de Swift.
Ele era judeu, mas a palavra judeu, se bem me lembro, não figura em seus escritos – que são intemporais e, desta maneira, eternos.
Kafka é o maior escritor clássico deste tumultuado e estranho século.
Escritor e poeta argentino, Jorge Luis Borges (1899-1986) publicou Ficções, O Aleph, História Universal da Infâmia, Informe de Brodie (contos) e Fervor de Buenos Aires (poesia), dentre outros; texto escrito por ocasião do centenário de nascimento de Franz Kafka. (Folha de São Paulo, 10.12.8)
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