segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O abutre

Um abutre me bicava os pés. Já havia despedaçado os sapatos e as meias e agora bicava-me os pés. Sempre que dava uma bicada, ele voava ao redor, em círculos agitados, e logo recomeçava a tarefa. Um senhor que passava olhou-nos algum tempo e me perguntou porque eu tolerava o abutre.

- Estou indefeso - disse-lhe. Ele veio e entrou a bicar-me, eu quis espantá-lo e até pensei em torcer-lhe o pescoço, mas estes animais são muito fortes e queria saltar-me à cara. Preferi sacrificar os pés, que agora estão quase em pedaços.

- Não se atormente mais - disse o senhor. Um simples tiro e era uma vez um abutre.

- O senhor acha? - perguntei. Quer cuidar do caso?

- Com muito gosto - disse o senhor. Preciso apenas ir em casa pegar o rifle. Pode esperar mais meia-hora?

- Não sei - respondi-lhe, e por um instante fiquei rigido de tanta dor que sentia. Depois acrescentei: - Por favor, queira tentar, pelo menos.

- Certo, disse o senhor. Volto logo.

O abutre havia escutado tranquilamente a nossa conversa enquanto o seu olhar ia do senhor para mim. Percebi então que havia compreendido tudo: voou um pouco longe, retrocedeu em busca do necessário impulso e, como um atleta que arremessa o dardo, mergulhou o bico em minha boca profundamente. Ao tombar de costas, senti como que, uma libertação. Senti que no meu sangue, que enchia todas as profundezas e transbordava de todas as ribas, o abutre se afogava - inapelavelmente.




Texto de Franz Kafka, tradução de Hélio Pólvora- crítico literário e tradutor. Pertence a academia de letras da Bahia.

Nenhum comentário: