segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O que é o prazer?


"O único meio de fugir à tentação é ceder à tentação"
Oscar Wilde

Este conto é um brinde em louvor a uma espécie rara de borboleta, única no mundo:
Jhozi Iphitas, da família Papiliomidae (Makina, 2008)


Certa vez, um Tietê-de-coroa*, que estava pousado à sombra de frondosa jaqueira, sentindo a carícia do vento em suas plumagens, questionou sobre o prazer. Perguntava a si mesmo se cada sensação provocada pelo vento desinteressadamente em seu pequeno corpo poderia ser considerado como elemento de satisfação. Estava tão envolvido em seus pensamentos que cogitou em voz alta:

- O que é o prazer?

Foi aí que uma folha caindo naquele instante à superfície de um rio que passava perto, interviu:

- O prazer é um bem dos ímpetos!

E o rio ao receber a folha que caiu em seu corpo silenciosamente, prosseguiu:

-É um bem do acaso!

E o vento que a todos visita, soprando à superfície do rio, disse:

- O prazer é um sopro sem destino!

- Pode acometer a todos indiscriminadamente... acrescentou a libélula.

-Prazer. Prazer. Prazer. Repetiu o papagaio pousando na jaqueira.

- O prazer é uma desgraça – refletiu a terra

- Uma pequena semente que cresce debaixo das sombras e nunca frutifica, retorquiu uma planta recém-nascida.

-Ah! Suspirou uma borboleta da família das Papiliomidae.

E este suspirar que acumulava muito mais sensação que palavras, incomodou a terra.

- Você só sabe suspirar, caríssima borboleta?

-Não, senhora terra. Sei me embriagar da seiva e alimentar outras sementes. Ah! Voltou a suspirar a borboleta batendo suas coloridas asas.

- Você não passa de um inseto desatento. Pousa aqui e acolá. Estamos falando do prazer e você só sabe dizer: Ah! Ah!

- Quem aqui não entende de prazer é vossa senhoria, dizendo que o prazer é uma desgraça.

- E tenho razão com o que digo. O prazer não enxerga nada a sua volta. Invade os sentidos, sufoca a razão e quando menos se espera atraí todas as desgraças.

-Ha! ha! ha!, debochou o rio.

- De que rir, senhor dono das águas? Perguntou a terra.

- Rio de tua ingenuidade. O prazer assumi a si mesmo. Por isso é assim designado. E a senhora não me diga que não sente prazer ao receber a semente dentro do teu corpo?

- Ora, meu caro senhor dono das águas, estamos falando do prazer despretensioso. O que ocorre no interior do meu corpo são fenômenos naturais. O prazer é um estímulo externo.

-Provocado por outros estímulos externos a nós. A semente em tuas entranhas é um estimulo do prazer. Você não sente? Prosseguiu o rio.

-Sentir? Lógico que sinto mais isto não me desconcerta, não cria tumultos, não me desespera.

-Desesperar? Quem disse que o prazer desespera? Alguém aqui falou em desespero?

-Não! Não! Não! Repetiu em coro, a jaqueira, o Tietê-de-coroa, o vento, a folha, o papagaio, a borboleta e a libélula.

-Parem com esta algazarra, gritou a terra. Parece que todos estão contra mim.

-Que é isto senhora terra? Não é nada disto. Estamos espairecendo prazerosamente o prazer que sentimos. Relaxa!

-Relaxa. Relaxa. Relaxa. Repetiu insistentemente o papagaio e partiu.

-Ah! Ah! Ah! Suspirou a borboleta e vôo.E enquanto o vento mais uma vez sacudia os galhos da frondosa jaqueira, colhendo-lhe algumas folhas... o que afugentou o pequeno Tietê-de-coroa, que ao fugir foi dizendo:

- O que é o prazer?

As folhas arrancadas da jaqueira ao caírem na superfície do rio repetiram:

- O prazer é um bem dos ímpetos!

E o rio para demonstrar essa sensação, criou muitos círculos que se agigantaram até sutilmente desaparecerem de sua superfície.Foi-se o vento. Calou-se o rio. Desapareceu o Tietê-de-coroa, a libélula, o papagaio. Adormeceu a planta recém-nascida. E todas as prematuras folhas foram arrastadas pelas águas do rio. E a jaqueira, como sábia que é, para não alimentar o mau humor da terra, resolveu tirar uma soneca.Ficou a terra solitária, refletindo as palavras do pequeno passarinho:

- O que é o prazer?

Foi aí, neste momento, que a terra sentiu a presença da garoa que começava a lhe salpicar o ventre, caindo lentamente entre a paz do entardecer e a presença de algumas estrelas pálidas que brilhavam longe. Se aquela sensação que circundava a escuridão tão próxima, poderia ser considerada prazer, então que permanecesse até quando durasse a noite. E se esse tal prazer que não anuncia a hora para instalar-se e que chega imperativamente fazendo-nos crer na eternidade... Então que seja! Que se revele! Que permaneça até o penúltimo sentir, revelado na pronuncia da última palavra.


*O Tietê-de-coroa ou Calyptura cristata (Vieillot, 1818), da Família Cotingidae, é uma espécie de pássaro, da fauna brasileira, provavelmente extinto.

Celeste Martinez- escritora

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