sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Quadro: A Hora da Crônica


Celeste Martinez (apresentadora do ALACAZUM com o livro: Páginas escolhidas ( do professor Adroaldo Ribeiro Costa)200 crônicas e dois contos- Seleção, organização e introdução de Aramis Ribeiro Costa.

Na 141° edição do programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 16 de agosto de 2009, transmissão pela Rádio Clube de Valença 650 KHZ AM fizemos a leitura da crônica: O homem, o gato e o curió do professor Adroaldo Ribeiro Costa.




Chegou a decisão do ruidoso e importante caso do homem que matou o gato que matou o curió. Vamos recordá-lo, que essas coisas devem ficar gravadas na memória das gerações. E até é pena que não reine por estas paragens o grande sultão Shariar, porque então seriam escritas em letras de ouro as várias peripécias desta história, que, sem nenhuma dúvida, mereceria figurar entre as obras-primas das Mil e uma noites. Ouvi, pois, oh vós todos, antes que a madrugada acabe.
Era uma vez um homem que tinha um curió. Tinha-o na gaiola e gostava de ouvir os seus trinados. Homem mau, não percebia que aquele era um canto triste de prisioneiro que deseja ardentemente a liberdade. No seu egoísmo, o homem julgava que o curió cantava por prazer, para alegrar as horas do dono. Infeliz! Nunca havia recitado na infância” O pássaro cativo” de Olavo Bilac.
Na mesma casa morava o gato. Gato vagabundo que passava os dias a dormir em quanta almofada encontrava à disposição, e saía às noites para serenatas incômodas pelos telhados da vizinhança.
O bandido do felino não tinha ocupação certa nem trabalho remunerado. Vivia de biscates. Sobras de comida, espinhas de peixe, baratas e camundongos. Mas, estes últimos andavam vasqueiros. Treinados por dolorosa experiência, não saíam dos buracos antes de cuidadosa inspeção pelo ambiente, que lhes dava a segurança da ausência do inimigo mortal.
De sorte que o gato andava triste. Sim, porque as espinhas de peixe também rareavam. O dono da casa, e, consequentemente, do curió, não estava em condições de servir à mesa petisco tão custoso. E, premido pelas circunstâncias, ia progressivamente diminuindo a quantidade de alimento comprado. O que resultava, inevitavelmente, na diminuição progressiva das sobras. Vejam, pois, a situação angustiosa em que se parava o salafrário do gato: camundongos ariscos, espinhas ausentes, sobras microscópicas...
Começou a ficar triste o gato vagabundo. Os olhos grandes abriam-se de vez em quando, e olhavam sem ver o que ia em sua volta, porque toda a atenção estava para o problema intimo:
- Que é que vou comer?
Foi numa dessas horas em que o curió, lá da gaiola, onde o prendera o egoísmo humano, abriu o bico. Cantava o infeliz, seu canto de dor.
O gato abriu os olhos, agora para ver. Para ver o curió. E viu. Viu e ficou a olha-lo fixamente, uma idéia a tomar-lhe conta do juízo.
O curió percebeu a atenção do ouvinte. E desdobrou-se em cantos, refletindo, lá com suas penas:
-Eis ai um de bom coração. Ouve-me com atenção tão religiosa que, por certo, há de compreender a minha mensagem. E há de ajudar-me.
Desse momento em diante, o curió cantou mais do que nunca. Trinados e mais trinados saíam de sua garganta privilegiada, para gozo do homem que comentava com os amigos:
-Meu curió está no ponto! Canta que é um danado”
Mal sabia que a letra daquela música era um libelo contra ele. Porque o curió cantava simplesmente isto:
-Vem, amigo! Liberta-me! Tu és meu único aliado! Vem, liberta-me!...
E o gato olhava. E ouvia. E pensava. Pensava esta coisa tremenda:
-Este curió deve ser gostoso como diabo!
Assim se passaram, não dez anos como quer o bolero, mas dez dias. O curió cantando, o homem encantado, e o gato esfaimado. Até que, no undécimo dia, o gato foi chegando de mansinho para a gaiola do curió. Chegou bem perto e disse com voz de gato inocente:
-Você quer que eu lhe tire daì?
- Quero sim- disse o curió aos trinados.
- Então, ajude-me. Vou afastar os arames da gaiola. Você sai, entra na minha boca, onde ficará escondido. Aí eu vou para fora, longe da vista do homem malvado abro a boca, e você sai...
O curió saltitou de contentamento. E tudo saiu segundo os planos, Tudo, menos o curió que não saiu da boca do gato. Foi nessa hora, justamente que o homem chegou. Num instante, apanhou todo o quadro, compreendeu o que se havia passado, e não contou conversa:levado aos cumes da ira, apunhalou o gato curioricida!
O caso apaixonou a opinião pública.Durante semanas e meses não se falava em outra coisa. Fundaram-se partidos políticos e clubes de futebol, com os nomes dos heróis da trágica história, houve até comícios inflamados que reuniram multidões, e os quais não faltaram sopapos, correrias e amabilidades policiais.
Os adeptos do curió argumentavam:
- A justiça foi feita! O homem que matou o gato deve ser absorvido porque puniu o matador de um dos mais meigos passarinhos de nossa matas. É um herói” É o próprio Vingador”
E logo apareceu quem sugerisse a idéia da construção de um monumento ao Vingador do Curió”.Saiu uma lista que arrecadou algumas centenas de cruzeiros. O monumento não saiu. Mas, saiu uma bruta farra.
Enquanto isso, os adeptos do gato, protestaram:
- É preciso enforcar esse bárbaro gaticida” Que fez, afinal, o pobre felino? Prestou dois benefícios de uma dentada só: aliviou a própria fome e libertou o curió! Porque a morte é a grande e definitiva libertação.
Só o homem não teve adeptos, por que ainda não foi fundada uma Sociedade Protetora dos Homens.
Eletrizantes mesmo, todavia foram os debates na sessão de julgamento do memorável pleito, como se pode ver deste trecho do cintilante debate, colhido taquigraficamente pela nossa reportagem. A transcrição é literal e absolutamente fiel.
ACUSAÇÃO- este homem é um criminoso. Não tinha o direito de matar o gato.
DEFESA – e o gato tinha o direito de matar o curió?
ACUASAÇÃO- as situações são perfeitamente diferentes, meu caro colega.
DEFESA- por que diferente? Um curió tem tanto direito à vida quanto um gato.
ACUSAÇÃO- sim, mas o gato matou o curió para comer, e o homem matou o gato por vingança.
DEFESA- então V. Exa. Esta acusando o homem não pelo crime de haver morto o gato, mas pelo fato de não o haver comido.
ACUSAÇÃO- perdão. Não estou afirmando tal. Seria incapaz de aconselhar que se comesse gato.
DEFESA – e por que?
ACUSAÇÃO- por causa do puxamento.
DEFESA- V. Exa. Com esse argumento, está não só injuriando os gatos como ofendendo os asmáticos.
ACUSAÇÃO- ora essa; Então V. Exa. Acha que se deveria comer os asmáticos?
DEFESA- não acho tal. Acho é que V.Exa. não tem o direito de pedir a condenação do homem, só por que não comeu o gato.
ACUSAÇÃO- V.Exa. esta usando sofismas... Meu pensamento é que o homem matou por vigança
DEFESA- não foi. O gaticídio foi um ato de justiça.
ACUSAÇÃO- justiça?
DEFESA- sim senhor. Afinal depois da violenta repressão ao ato criminoso, é possível que cessem os curioricidios.
ACUSAÇÃO- ora ai esta V.Exa com pieguices. Desde o principio do mundo,c urió existiu para ser comido por gato.
DEFESA- perdão. Curió existe para deliciar-nos com seu canto mavioso...
ACUSAÇÃO- nesse caso V.Exa. não acha uma violência um crime, prender um curió numa gaiola?
DEFESA- agora uso o argumento de V.Exa: isso há desde o principio do mundo.
ACUSAÇÃO: Mas, o que há desde o principio do mundo é morte de gato a facadas.
Por ai foram, nesse debate brilhante. Por fim, o home foi condenado, à pena mínima. Terá de pagar cem cruzeiros de multa. Pagar a quem? Naturalmente à viúva do gato, uma gata de comportamento suspeito que vive pelas vizinhanças. E, com esse dinheiro, ela poderá mandar os filhos à escola. Por onde se vê que os franceses têm razão quando dizem que em todo mal há sempre um bem....



Retirado do livro:Páginas escolhidas ( do professor Adroaldo Ribeiro Costa)200 crônicas e dois contos- Seleção, organização e introdução de Aramis Ribeiro Costa.






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